SÃO PAULO – O governo tem poder para exigir a vacinação e a declaração do presidente Jair Bolsonaro, de que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”, contraria a Constituição Federal, na opinião de especialistas em Direito e Saúde Pública ouvidos pelo Estadão. Uma discussão sobre a obrigatoriedade de pais imunizarem crianças está em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF).
A declaração de Bolsonaro foi feita para apoiadores no Palácio da Alvorada, após uma simpatizante pedir que o presidente não deixasse fazer “esse negócio de vacina” porque era “perigoso”. Em seguida, a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) reproduziu no Twitter a fala do presidente. A imagem de Bolsonaro acenando para apoiadores do alto da rampa do Palácio do Planalto acompanha a mensagem “o governo do Brasil preza pelas liberdades dos brasileiros”.
“O governo do Brasil investiu bilhões de reais para salvar vidas e preservar empregos. Estabeleceu parceria e investirá na produção de vacina. Recursos para Estados e municípios, saúde, economia, tudo será feito, mas impor obrigações definitivamente não está nos planos”, diz a publicação da Secom.
Para Roberto Dias, professor de Direito Constitucional da Fundação Getulio Vargas (FGV), a declaração de Bolsonaro “fere claramente norma expressa na Constituição”, que determina que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença.
“Se há ordem para que o Estado viabilize políticas que possam reduzir o risco de doenças, ele (o presidente) está impedido de fazer algo contrário a isso. Quando põe em dúvida a obrigatoriedade da vacina, desincentiva ou pratica um ato como esse, eximindo as pessoas de uma obrigação coletiva – o que coloca em risco a saúde da população como um todo – ele está indo expressamente contra essa previsão constitucional.”
Além disso, quando diz que “ninguém pode obrigar ninguém a se vacinar”, contraria lei sancionada por ele próprio, na opinião de Dias. Em fevereiro, Bolsonaro sancionou lei que permite a vacinação compulsória como forma de enfrentar a pandemia do novo coronavírus. “Há uma determinação legal no sentido de considerar a vacinação como algo obrigatório. Isso na lei específica da covid, mas há outras previsões no ordenamento jurídico que já fazem isso”, diz o professor de Direito.
Dias cita o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e até a legislação do Bolsa Família, que condiciona o recebimento da prestação à vacinação das crianças. “Pode-se restringir direitos se aquela obrigação não for cumprida. O legislador deve privilegiar a saúde pública.”
Esta sanção pode ocorrer de várias formas e em diferentes esferas (municipal, estadual ou federal). Podem ser criadas, por exemplo, restrições de viagens para quem se recusa a receber o imunizante. “Pode haver regras específicas para o caso da vacinação da covid, mas a obrigatoriedade já existe.” Nesta quarta-feira, 2, após repercussão da fala de Bolsonaro, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), disse que “a vacina tem de ser uma decisão pessoal de cada um, mas uma obrigação, uma determinação do Estado”.
Para Juliana Hasse, presidente da Comissão de Direito Médico e de Saúde da OAB-SP, seria necessário um outro ato normativo, além da lei sancionada em fevereiro, para instituir a obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19. “O governo não tem obrigação de tornar obrigatório. E, para tornar, teria de ter um outro ato normativo, uma lei.”
Caso seja necessário, porém, o Estado tem poder de polícia. “Pode limitar direitos individuais como liberdade e propriedade em benefício do bem-estar coletivo. No caso de vacina, nem precisava da lei da covid, porque a Lei de Vigilância Epidemiológica já diz que o Ministério da Saúde pode definir vacinação, inclusive as obrigatórias”, explica Daniel Dourado, médico sanitarista e advogado membro do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa).
O especialista pondera, no entanto, que essa discussão sobre a vacina contra a covid-19 deve ser posterior à aprovação de um imunizante no País. Para ele, as regras de vacinação só poderão ser determinadas após o conhecimento das características da vacina, como a eficácia. A partir disso, seriam determinados os grupos prioritários e obrigatórios, como acontece com a gripe.
Se as crianças e adolescentes forem considerados grupo prioritário, por exemplo, o ECA já determina ser “obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. Caso não o façam, pais e responsáveis podem levar multa e até perder a guarda.
Debate sobre obrigatoriedade de vacina vai ao STF
Antes mesmo da polêmica em relação à vacina contra a covid-19, o debate sobre a obrigatoriedade da imunização já havia chegado ao STF, que deve decidir sobre a possibilidade de os pais deixarem de vacinar os seus filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais.
O julgamento, com repercussão geral, é sobre o caso de uma criança de 5 anos. O Ministério Público de São Paulo entrou com uma ação contra os pais de um menino para obrigá-los a seguir o calendário de vacinação. Os pais são adeptos da filosofia vegana e contrários a intervenções medicinais invasivas.
O argumento era de que o bem da criança estava acima da vontade da família. A Justiça negou tendo como fundamento a liberdade dos pais de guiarem a educação e preservarem a saúde dos seus filhos, mas o Tribunal de Justiça reverteu, determinando, em caso de descumprimento da decisão, a busca e apreensão da criança para a regularização das vacinas obrigatórias.
Decisões favoráveis para que os pais não sejam obrigados a vacinar os filhos são casos pontuais e partem de uma interpretação equivocada do juiz, na opinião de Dias. Segundo o especialista, essas decisões dão mais peso para a liberdade individual do que para a saúde pública.
‘Vacina é ação solidária’
Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), aponta para a importância da ampla vacinação contra a covid-19 no País, mas pondera que ainda não é possível determinar diretrizes e grupos prioritários, uma vez que ainda não há um imunizante aprovado.
“O importante é saber que a vacina não será aplicada nos brasileiros sem que a gente tenha certeza da sua eficácia. A ciência precisa de dados. Nenhuma vacina será licenciada de qualquer jeito. Pode ser mais rápido, mas não com negligência”, diz.
Juliana Hasse acrescenta que a imunização contra o coronavírus é a “chance de a gente poder voltar ao normal”. “A vacina é uma ação solidária, tem toda uma questão de direito que envolve o próximo”, diz a especialista. Segundo a presidente da Comissão de Direito Médico e de Saúde da OAB-SP, a declaração do presidente foi “infeliz” e “reduziu a importância da vacina”.
Declaração tem potencial ‘antivax’
Para Isabella Ballalai, a declaração de Bolsonaro se assemelha e pode “dar força” aos antivacinistas. A vice-presidente da SBIm diz que, apesar de acreditar nos brasileiros e na procura pela vacinação, “uma frase solta com destaque na comunicação oficial pode gerar um retrocesso”. Não apenas para a imunização contra a covid-19, mas para todas as doenças que necessitam de uma aplicação de vacina.
Além disso, Daniel Dourado afirma que a declaração do presidente é preocupante pois “atrapalha” e “boicota” a atuação dos profissionais de saúde. “Ele está plantando a dúvida sobre algo que é seguro, eficaz, e é uma das tecnologias mais importantes”, diz.
Ainda segundo Dourado, a ação da Secom, de institucionalizar a fala do presidente com a publicação no Twitter, é uma “mistura entre público e privado”. “É como se o que o presidente fala fosse o governo.” O parágrafo 1º do artigo 37 da Constituição determina que “a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos”.
Dourado cita ainda as constantes declarações do presidente contra as medidas de isolamento, higiene e proteção – como o uso das máscaras – estabelecidas pelos governos e municípios na tentativa de conter a disseminação do novo coronavírus. “Se ele é contra uma medida eficaz, incentiva a população a ir para a rua ou fica fazendo propaganda de algo que não funciona, está violando o direito à saúde e à informação clara e eficaz. No meu entendimento, isso pode até ser considerado crime de responsabilidade”, ressalta Dourado.
Procurada, a Secom não respondeu até as 18 horas de quarta-feira, 2. O Ministério da Saúde não quis se posicionar.
Por Marina Aragão