LIVRO

Eduardo Bueno lança dicionário sobre a Independência do Brasil

Autor mescla humor e análise para tratar do fato histórico e da origem de problemas que o país não consegue erradicar. ‘O Brasil muda para continuar igual’, diz

PG

Pedro Galvão

Personagens históricos têm sua atuação no processo de Independência do Brasil descrita na forma de verbetes no livro(foto: Paula Taitelbaum / Reprodução)

Se em qualquer dicionário de língua portuguesa o termo “independência” ganha uma lista variada de significados, quando o substantivo se refere ao processo que separou o Brasil de Portugal os entendimentos são ainda mais diversos. Em uma tentativa bem-humorada e objetiva de explicá-la, o jornalista e escritor gaúcho Eduardo Bueno lança na próxima terça-feira (15) o Dicionário da Independência: 200 anos em 200 verbetes. Como o título sugere, a ideia é recorrer a termos-chave para entender esse episódio.

As 140 páginas incluem verbetes “de A a Z”. A palavra fundamental para o volume, iniciada em I, está presente, conta com uma longa descrição, que inclui a observação: “Se você quiser ir direto ao ponto, pode dizer que a Independência  foi (mais) uma das ocasiões nas quais o Brasil mudou para continuar igual. Sim, porque o país ficou independente, mas não só se manteve uma monarquia (e não uma república, a exemplo de nossos vizinhos, as ex-colônias espanholas), como também permaneceu uma monarquia sob o comando de um soberano português”.

O autor prossegue dizendo: “Além disso, a nação que surgiu após o Grito do Ipiranga preferiu (ao contrário dos vizinhos castelhanos) não abolir a escravidão. Ou seja, o país se anunciou como livre para o resto do mundo, só que aqui ainda viviam mais de meio milhão de escravos. Como quer que seja, uma coisa é certa: só é realmente livre o povo que conhece – e por isso constrói  – a própria história”, o que é um bom exemplo da característica geral do livro: apesar do tom lúdico, adota um método analítico.

O sumário inclui velhos conhecidos dos livros de história, como Dom Pedro I, José Bonifácio, Dom João, Dona Leopoldina, e outros personagens nem sempre mencionados, como Domitila, a amante do imperador, e Chalaça, seu melhor amigo. Substantivos comuns surgem às dezenas, como abdicação, café, casamento, censura prévia, colônia, chinês, livros, povo, riacho, xenofobia, e há ainda adjetivos.

No caso de “brasileiro”, o texto explica que tratava-se de um pejorativo até a época do 7 de setembro de 1822. “Originalmente, a palavra brasileiro era usada apenas e tão somente para se referir às pessoas que trabalhavam com o tráfico de pau-brasil. E estava correto, pois o sufixo ‘eiro’ indica um ofício, como em sapateiro, ferreiro, bombeiro.(…) Por isso, ‘brasileiro’ era depreciativo – na verdade, quase uma ofensa. E era com essa intenção malévola que integrantes das cortes constituintes portuguesas chamavam D. Pedro de ‘O Brasileiro’. Se as regras gramaticais tivessem sido corretamente aplicadas, deveriamos nos chamar e ser chamados de ‘brasilienses’, como, aliás, o somos em inglês (brazilians) e em francês (bresiliens)”, aponta o dicionário.

MULA

Autor de mais de 10 livros anteriores sobre a história do Brasil, com destaque para a Coleção Brasilis, da editora Objetiva, Eduardo Bueno afirma que procurou “um equilíbrio entre três vertentes, uma delas englobando Dom Pedro, o Grito do Ipiranga, José Bonifácio. Outra para coisas mais desconhecidas, como quanto custou a Independência, com o verbete ‘dinheiro’; o papel das mulheres e o do marquês de Marialva, e uma terceira para as curiosidades, com uma pegada divertida, falando da diarreia que Dom Pedro sentia no dia, e da mula, já que não montava um cavalo, mas uma mula”.

 

Alguns verbetes, conforme observa o autor, remetem a aspectos do presente. “O Piolho Viajante era um dos pseudônimos que Dom Pedro usava para escrever nos jornais. Hoje nos indignamos com o teor violento das discussões nas redes sociais, com as ofensas, mas, se lermos os artigos que os jornais da época publicavam, logo antes e logo depois da Independência, nada disso que vemos hoje é novidade. São muito mais violentos que esses de hoje, ofensas pessoais e anônimas.”

Ainda sobre os paralelos históricos, o autor diz que “na história de 1822, nesse e em outros livros, reconhecemos imediatamente a atualidade e a gravidade de determinadas coisas, como censura prévia, ofensas na imprensa, dívida externa, escravidão, xenofobia, coisas que ainda existem, porque é um país que muda para permanecer igual. Bolsonaro, por exemplo, se elegeu com o discurso de que iria combater a corrupção. Ele se elege com o apoio de um juiz, convoca-o para o ministério, depois o demite, interfere na Polícia Federal, acaba com a Lava-Jato e ponto. Mudamos, mas continuamos iguais. E de quem é a culpa? Nossa, da sociedade civil, que não exerce a cidadania, porque isso só é feito conhecendo história.”

Lançado pela editora Piu, mais voltada para títulos juvenis, Dicionário da Independência: 200 anos em 200 verbetes foi financiado via edital lançado em 2018 pelo extinto Ministério da Cultura para a produção de obras literárias sobre a Independência do Brasil. O livro é ilustrado por Paula Taitelbaum, casada com Bueno e sócia da editora.

OLHAR AMPLIADO

Mosaico com imagens do Dicionário biográfico excluídos da história, produzido por estudantes participantes da Olimpíada Nacional em História do Brasil (ONHB) (foto: Unicamp/Reprodução)

Mais de 6 mil estudantes brasileiros entre o oitavo ano e o ensino médio, da rede pública e particular, participantes da Olimpíada Nacional em História do Brasil (ONHB) do ano passado, criaram o dicionário biográfico Excluídos da história. São 2.251 verbetes sobre personagens raramente estudados na historiografia tradicional.

O trabalho deu origem a uma plataforma virtual (www.olimpiadadehistoria.com.br/especiais/excluidos-da-historia), na qual figuras de grande importância social, mas pouca visibilidade, têm suas trajetórias contadas.

Alfabeticamente, estão contemplados desde Abdias do Nascimento (1914-2011), ativista e político brasileiro que atuou no movimento da Frente Negra Brasileira (1931-1937) enfrentando forte perseguição e chegando a passar três anos detido no Carandiru, onde liderou o projeto do Teatro Sentenciado, reinventando a cultura de vários presidiários, até Zeferina. A princesa angolana foi trazida ao Brasil ainda criança, como escrava,  no início do século 18, e criou e liderou o Quilombo do Urubu como rainha.

“No ano passado, trouxemos esse tema sobre grandes personagens que não estão nos livros de história, inspirados pelo samba da Mangueira (Histórias para ninar gente grande). O projeto nasce de uma das tarefas colocadas para os participantes da Olimpíada, na qual os estudantes tinham uma semana para escolher um desses personagens, justificar a escolha, fazer uma linha do tempo e conseguir uma imagem, foto ou desenho. Esse material ficou muito bom. Mostra o conhecimento produzido na educação básica, que nem sempre tem visibilidade”, afirma Cristina Meneguello, professora de história da Unicamp e coordenadora da Olimpíada Nacional em História do Brasil.

“Já há um tempo, a história oficial que se produz na academia não é sobre grandes nomes, grandes líderes. Essa história da política diplomática é da história positivista, do século 19. Historiadores trabalham com grupos sociais, pessoas que não eram narradas nas histórias há um tempo. Nos livros didáticos, há tendência de se procurar os grandes líderes, grandes nomes, mas a história é feita pelo sujeito humano, por grupos sociais. Ninguém faz transformações sozinho, é sempre um encontro de pessoas, e muitas delas ficam invisíveis nas narrativas oficiais por ser de classes populares. Nossos verbetes contemplam mulheres, negros, indígenas e grupos de certa forma excluídos da nossa sociedade”, diz a professora.

 

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By Moysés