A 40 dias da eleição, piores cenários preveem risco de ‘apocalipse eleitoral’ nos EUA
A 40 dias da eleição presidencial, se espalha entre os americanos a sensação de que estão na antessala de uma espécie de apocalipse eleitoral.
© Reuters Fatores como atraso nos resultados podem causar tensão e desestabilizar eleições americanas neste ano
Os piores cenários projetados tanto na imprensa dos Estados Unidos quanto por parte dos próprios eleitores incluem atraso e incerteza no resultado, judicialização da eleição, candidatos que não reconhecem a derrota, ou que reivindicam vitória sem ter vencido e o risco de que tudo isso degringole em conflitos entre os próprios cidadãos do país em uma versão mais violenta dos confrontos vistos até agora entre apoiadores do presidente Donald Trump e manifestantes por justiça racial.
Esses fatores explicam o mal-estar generalizado e a impressão de que a democracia americana enfrenta seu maior desafio desde a Guerra Civil, em 1864, de acordo com especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
“Na história dos Estados Unidos, várias vezes realizamos eleições presidenciais durante tempos de guerra, mesmo durante uma guerra civil. Esses são os únicos precedentes comparáveis como o que estamos vivendo agora, pelo nível de incerteza e de tensão”, afirmou à BBC News Brasil o historiador Bruce Schulman, diretor do Instituto de Política Americana ligado à Universidade de Boston.
As ameaças são tão concretas que, na quarta-feira (23/09), o FBI alertou aos americanos que se preparem para um ataque em massa de desinformação, especialmente de fontes russas, diante de um “muito provável” atraso nos resultados. A agência de investigação prevê que hackers tentarão produzir caos social com conteúdo falso sobre fraudes eleitorais.
Incerteza sobre transição
O primeiro componente para a tensão está no comportamento do próprio Trump, que busca a reeleição em novembro e tem lançado dúvidas sobre se fará uma transição pacífica de poder em janeiro, caso perca o pleito para seu rival, o democrata Joe Biden.
Ele tem ainda criticado a votação por correio como fonte de fraude, o que não se sustenta historicamente. E chegou a sugerir que seus eleitores votem duas vezes, por carta e presencialmente, o que seria ilegal.
Na quarta-feira, questionado por um repórter exatamente sobre isso, Trump respondeu laconicamente: “Bem, nós vamos ter que ver o que acontece”. Em 2016, o presidente também se recusou a firmar um compromisso de que aceitaria uma eventual derrota nas urnas pela então candidata democrata Hillary Clinton.
Teoricamente, as palavras de Trump não significam muito no processo formal da eleição, além de inflamar seus apoiadores. Mas, na visão de especialistas, há a chance de que seu comportamento influencie o trabalho de quem apura os votos.
© Reuters Comportamento de Trump será decisivo para uma possível transição pacífica do poder
“O problema será se, por causa das palavras de Trump, as autoridades eleitorais se recusarem a certificar os votos ou decidirem interromper ou interferir na contagem das cédulas por correio”, diz Schulman.
De acordo com uma recém-publicada reportagem da revista The Atlantic, seria exatamente essa operação política que estaria em curso.
A publicação afirma ter ouvido de um consultor jurídico de Trump e de três líderes republicanos na Pensilvânia, um dos estados mais disputados no pleito, que um “plano de contingência” já estaria na mesa para alegar que votos foram fraudados caso o presidente apareça em desvantagem.
Uma outra possibilidade seria que as assembleias legislativas locais – muitas delas são republicanas nos Estados em que a corrida é mais acirrada – convençam as autoridades eleitorais a indicar delegados republicanos para o colégio eleitoral, independentemente do resultado nas urnas. Essa seria uma interpretação possível do processo eleitoral segundo a Suprema Corte.
Para Richard Pildes, professor de direito constitucional da Universidade de Nova York, a mera possibilidade de que esse tipo de discussão esteja surgindo agora sugere que um dos pilares centrais da democracia está erodindo: a premissa de que os competidores aceitam as regras do jogo de antemão e reconhecem sua derrota se ela vier.
“Estamos em uma situação em que muitas pessoas estão convencidas de que se o outro lado vencer, o país nunca mais será o mesmo. E quando as pessoas se sentem assim, é um perigo”, afirmou.
“Em tempos democráticos normais, os perdedores de uma eleição podem ficar decepcionados, mas reconhecem que perderam porque sabem que podem disputar novamente, em quatro anos. Mas quando os eleitores sentem que tudo está em jogo agora, e que nada será como antes se o outro lado vencer, é difícil de prever como os atores de ambos os lados vão responder diante da derrota, especialmente se desconfiarem dos resultados”, afirmou ele à BBC News Brasil .
Votos anulados
A pandemia de coronavírus criou uma necessidade inédita de que milhões de eleitores votem por correio, um sistema que já existia nos Estados Unidos mas que não havia chegado à escala prevista em 2020.
Uma pesquisa do instituto Pew Research, de agosto, estima que 39% dos eleitores votarão por correio em todo o país, o que pode levar a muitos votos anulados e a atrasos na apuração dos resultados.
“O sistema eleitoral americano está enfrentando um estresse extraordinário e inédito como resultado do vírus. Isso significa que os funcionários eleitorais tentam montar dois tipos de eleição ao mesmo tempo: primeiro, para uma grande quantidade de votos por correio. E segundo, uma votação presencial expressiva e em condições seguras dada a pandemia. Tudo isso em pouco tempo e com pouco dinheiro”, afirma Pildes.
© Reuters Pesquisa revelou que 80% dos eleitores interessados a votar pelo correio têm Biden como candidato
A questão da votação por correio ainda se complica um pouco mais porque, de acordo com uma pesquisa encomendada pela revista Economist ao Instituto YouGov, dentre os eleitores que se dizem interessados em votar por correio, 80% têm como candidato o democrata Biden. Logo, um dos lados terá muito mais a perder se algo sair errado com quem votar por carta.
Pildes acredita que, especialmente se a eleição for apertada, como parece provável, haverá uma intensa disputa em relação à validade de cada voto por correio. Em 2018, de acordo com a Comissão de Assistência Eleitoral dos Estados Unidos, em média 4% das cédulas enviadas por carta acabaram descartadas.
O percentual, no entanto, varia por Estados, de acordo com o preparo de cada um deles pra esse tipo de votação: de 1% a 15% de votos descartados. Em um modelo estatístico da revista The Economist, supondo que 10% dos votos sejam descartados, Biden perderia até 4 pontos percentuais, algo nada desprezível na disputa.
E embora seja um percentual alto de rejeição de cédulas, ele não é de todo improvável. Isso porque o processo de votação por correio exige que a assinatura do eleitor e da testemunha no envelope em que o voto estará depositado seja perfeitamente condizente com os registros oficiais. E que tudo esteja dentro de um segundo envelope, que deve chegar fechado e lacrado ao momento da contagem.
De acordo com a interpretação atual da lei, votos que chegarem sem esse segundo envelope devem ser imediatamente descartados, mesmo que as assinaturas sejam válidas e o envelope do voto em si não tenha sido violado.
É fácil perceber o tamanho da confusão que esse tipo de regra pode causar quando se olha para o caso da Pensilvânia, por exemplo. Ali, as autoridades estimam que ao menos 40 mil votos chegarão sem o segundo envelope na eleição de 2020.
Eles seriam automaticamente invalidados, o que poderia mudar o resultado eleitoral. Em 2016, Trump venceu no Estado por uma margem de apenas 44 mil votos.
Judicialização da eleição
“Haverá intensa briga por cada uma dessas cédulas e se elas são válidas ou não. Nessa, os tribunais podem entrar em cena e é fácil imaginar uma situação que pode se tornar perigosa rapidamente”, avalia Pildes.
Na quarta-feira, o presidente Donald Trump deu como certo que a Suprema Corte será chamada a arbitrar a eleição ao final.
E como se o cenário não fosse suficientemente complexo, há uma semana, uma dentre os nove juízes do tribunal morreu: a progressista Ruth Ginsburg.
Embora fosse desejo de Ginsburg que seu substituto fosse escolhido pelo presidente eleito para o próximo mandato, Trump já afirmou que pretende fazer a indicação do sucessor da juíza no próximo fim de semana. Também já se sabe que ele conta com votos suficientes no Senado para que sua escolha seja aprovada, possivelmente antes das eleições.
Assim, os conservadores deixariam de ter uma maioria apertada na Corte, que tem produzido a eles reduzidos negativos já que com frequência o Juiz Chefe do colegiado, o conservador John Roberts, se alinha aos magistrados liberais na Corte, e passariam a ter um confortável 6 a 3 a seu favor. Na prática, Trump indicaria um juiz que pode ser o fiel da balança a garantir-lhe um novo mandato.
“Tenho certeza de que a Suprema Corte gostaria de ficar o mais longe possível dessas questões. Não é bom para o tribunal ser ator significativo na resolução da eleição. Qualquer que seja a decisão do tribunal, um dos lados ficará decepcionado e sentirá que a Corte age de maneira partidária, o que fragiliza essa instituição democrática”, diz Pildes.
Atraso nos resultados
Se o resultado realmente depender dos juízes da Suprema Corte, os americanos podem se ver mais uma vez diante de uma espera de mais de um mês para saber, afinal, quem é o novo presidente. Cenário parecido aconteceu em 2000, quando a corte teve de arbitrar uma disputa de recontagem de votos entre o democrata Al Gore e o republicano George W. Bush na Flórida.
Mas a judicialização não é a única possibilidade de atrasos. A grande quantidade de votos por correio pode empurrar o resultado para dias após o fechamento das urnas. Isso porque enquanto alguns Estados com tradição de voto por correio, como o Oregon, começam a contar essas cédulas antes mesmo do fechamento das urnas, e apresentam os resultados minutos após o fim da votação, outros Estados, como a Califórnia, permitem que os votos cheguem até cinco dias após o término do pleito, o que pode atrasar a contagem de um número relevante de votos.
© EPA Americanos podem ter de esperar mais de um mês para saber resultado das eleições
O tempo que demorará para que haja uma definição sobre o novo presidente é um dos fatores que mais complicam a eleição atual.
“Acho que se não soubermos o vencedor na noite da eleição, ou pelo menos na manhã seguinte, entraremos em um território perigoso, porque mesmo que as autoridades eleitorais estejam fazendo tudo de maneira apropriada, o clima político nos Estados Unidos atualmente é tão explosivo que, se houver incerteza sobre o vencedor, podemos imaginar tipos de cenários começando a se desenvolver, incluindo o candidato que parece estar à frente naquele ponto tentando se declarar o vencedor”, afirma Pildes.
Na quarta-feira, o FBI e a Agência Nacional de Ciber-segurança dos Estados Unidos alertaram os americanos de que diante do “muito provável” atraso nos resultados eleitorais, os órgãos de investigação anteveem ações em massa de desinformação de forças estrangeiras, especialmente dos russos, que tentarão convencer os americanos de que ocorreram “ataques cibernéticos contra infraestrutura eleitoral, fraudes eleitorais e outros problemas com a intenção de convencer o público da ilegitimidade das eleições”, diz o relatório dos órgãos.
Diante do risco de desinformação em massa nas redes sociais e até mesmo de que Trump ou Biden publiquem mensagens se autoproclamando vencedores, as plataformas estudam adotar para os Estados Unidos protocolos de segurança que aplicam em países com processos eleitorais contestados.
O Twitter, por exemplo, afirma que usuários que postem “mensagens enganadoras sobre resultados eleitorais” podem ter seu post apagado ou marcado como falso ou até mesmo ter seu perfil banido da rede.