As inconsistências no currículo de Kassio Marques e o impacto para sua indicação ao STF

Redação

Nos últimos dias, vieram à tona informações sobre inconsistências no currículo apresentado pelo desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) Kassio Marques, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para assumir uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) no lugar do decano Celso de Mello, que se aposenta no dia 13.
Marques será sabatinado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado no dia 21, antes de uma votação secreta no colegiado e, na sequência, no plenário. Para ser aprovado, o desembargador precisa de, no mínimo, 41 votos favoráveis entre os 81 senadores.
© Dida Sampaio/Estadão O desembargador Kassio Marques, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para ocupar vaga no Supremo
Ainda há dúvidas sobre o impacto que informações de que cursos que ele afirma ter feito não existem, como revelou o Estadão, e que trechos de sua dissertação são idênticos a outros trabalhos acadêmicos vão ter na avaliação que o Senado fará do seu nome.
Veja, abaixo, perguntas e respostas sobre o que já se sabe sobre o caso, quais são os critérios para se tornar ministro do Supremo e como foram tratados candidatos que foram acusados de plágio ou de prestar informações falsas em seu currículo.
O que já foi descoberto sobre o currículo de Kassio Marques?
Foram reveladas algumas inconsistências no currículo do desembargador. A dissertação de mestrado que ele apresentou à Universidade de Lisboa tem trechos idênticos, inclusive os erros de digitação, a três artigos acadêmicos do advogado Saul Tourinho Leal. Segundo levantamento feito pelo Estadão, ao menos 13% do que Marques entregou é igual a o que Tourinho escreveu anos antes. Ambos negam plágio, dizem que trabalharam juntos em algumas das ideias e que a dissertação de Marques e os artigos de Tourinho chegam a conclusões diferentes.
© Reprodução/TRF1 Currículo de Kassio Marques divulgado no site do TRF-1 apresenta doutorados e pós-doutorados
Além disso, o currículo acadêmico apresentado ao TRF-1 menciona uma pós-graduação em “Contratación Pública”, pela Universidad de La Coruña. A instituição espanhola informou ao Estadão que não oferecesse esse curso e que o desembargador passou cinco dias na instituição. Marques disse que foi um “erro de tradução” e que não quis se referir a pós-graduação.
© Reprodução Em email, universidade informa não tem ‘nenhum curso de pós-graduação com a denominação pós-graduação em Contratação Pública’
Seu currículo, disponível publicamente no site do TRF-1, Marques lista uma pós-graduação e um pós-doutorado que teriam sido feitos, se somados, em um período de dez dias. Esses dois cursos, juntos, demorariam até quatro anos, segundo informações da PUC-RS e do Ministério da Educação. Outro pós-doutorado que teria sido feito em uma semana foi defendido na Universidade Federal de Messina, Itália, onde ele declara ter realizado cinco dias de aula, em formato “intensivo”.
Por que é importante checar o currículo de um candidato a ministro do Supremo?
O Supremo Tribunal Federal é o tribunal mais importante do País. Os ministros são responsáveis por avaliar se as leis e decisões de outros juízes estão de acordo com o que diz a Constituição, além de julgarem os últimos recursos de processos em que as partes argumentam haver algum tipo de afronta ao texto constitucional. Também é responsabilidade do Supremo processar autoridades com foro, como presidentes, senadores e deputados. Devido à importância do cargo, espera-se que todos os seus 11 integrantes não tenham nenhum tipo de problema com a Justiça ou sua reputação.
Quais são os requisitos para alguém ser ministro do Supremo Tribunal Federal?
O artigo 101 da Constituição Federal estabelece quatro critérios para alguém ser nomeado ministro do STF: ser cidadão brasileiro, ter entre 35 e 65 anos, possuir “notável saber jurídico” e “reputação ilibada”. Como diz o professor Thiago Bottino, da FGV, em análise publicada nesta quinta-feira no Estadão, esses dois últimos critérios são subjetivos. Nas palavras do professor, definir o que é a reputação ilibada “depende dos valores pessoais de quem avalia a conduta do indicado” – no caso, os senadores. Da mesma forma, o notável saber também é subjetivo e não significa, necessariamente, títulos acadêmicos. Quando foi indicado, em 2009, Dias Toffoli tinha graduação em Direito – sem mestrado ou doutorado. Já a ministra Ellen Gracie, que atuou no STF de 2000 a 2011, tinha pós-graduação em Antropologia Social.
As inconsistências no currículo de Kassio Marques podem atacar o princípio de ‘reputação ilibada’?
Há controvérsias. Como se trata de um conceito subjetivo e que é avaliado por políticos, os senadores, no momento da sabatina, juristas ouvidos pelo Estadão fazem interpretações distintas sobre o assunto. Um dos autores do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o jurista Miguel Reale Júnior diz que as revelações feitas até agora deveriam impedir a aprovação de Marques no Senado. “O saber jurídico desaparece com o plágio e as afirmações de pós doutorado inexistente.” Além disso, afirmou Reali Júnior, “a reputação ilibada enfrenta o pior vício que a vida acadêmica pode ter: o plágio.” Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Floriano Marques, defende que a questão seja avaliada pelos senadores. “O crivo pelo Senado não é o mesmo que numa ação judicial. Quem tem que fazer este escrutínio forte e profundo são os senadores sob a luz da opinião pública.”
O Senado já rejeitou a indicação de algum ministro do Supremo?
Sim, mas há 126 anos. Segundo informações do Senado, cinco nomes indicados pelo presidente Marechal Floriano Peixoto foram rejeitados em 1894. Três deles não eram formados em Direito: o médico Barata Ribeiro, o general Ewerton Quadros e o então diretor-geral dos Correios, Demóstenes Lobo. Também foram rejeitados pelo Senado o general Galvão de Queiroz e o subprocurador da República Antônio Seve Navarro. As sessões que analisaram as indicações foram secretas, mas historiadores apontam que, na época, havia insatisfação do Legislativo com Peixoto. Desde então, o Senado não vetou nenhuma indicação.
Quando foram indicados, ministros atuais tiveram problema com seus currículos?
Sim. Em 2017, quando foi indicado ao Supremo, Alexandre de Moraes foi acusado de ter reproduzido, na íntegra, em suas publicações acadêmicas, trechos de livros de outros autores sem dar crédito. No livro Direitos Humanos Fundamentais, Moraes teria publicado trecho idêntico ao do livro do ex-juiz espanhol Francisco Rubio Llorente. Em sua defesa, Moraes disse que a obra era citada na bibliografia. Moraes também foi questionado sobre um título de pós-doutorado, que teria conseguido enquanto cursava o doutorado, segundo o que constava em seu currículo. A assessoria do ministro disse que foi um “erro de preenchimento” e o corrigiu.
Quando foi sabatinada, a ministra Cármen Lúcia foi apresentada aos senadores como doutora. Ela depois esclareceu que cursou as disciplinas do doutorado, mas não apresentou sua tese, e que, por isso, não poderia ser chamada de doutora. A ministra costuma fazer a correção quando é apresentada como doutora em eventos públicos.
Por que mesmo após as inconsistências do currículo de Kassio Marques virem à tona políticos e ministros do Supremo ainda defendem sua indicação?
A indicação de Kassio Marques para o Supremo faz parte de uma costura política entre o presidente Jair Bolsonaro, políticos do Centrão, bloco de partidos que costumam apoiar o governo em troca de cargos e participação na máquina pública, e uma ala da Corte que faz críticas à Operação Lava Jato. O nome recebeu aval do ministros do STF Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente do Senado, e agrada a parcela da classe política. Um dos líderes do Centrão, Ciro Nogueira (Progressistas-PI) já se referiu ao desembargador, em junho de 2019, como “nosso Kassio”.
Como Kassio Marques entrou na magistratura?
O artigo 94 da Constituição Federal prevê que um quinto das vagas de determinados tribunais sejam ocupadas por advogados e integrantes do Ministério Público – é o chamado “quinto constitucional”. No caso dos advogados, como o caso de Kassio Marques, eles são incluídos em uma lista elaborada por seus pares da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que é enviada para o governador do Estado onde está o tribunal ou o presidente da República. Marques entrou na vaga do quinto constitucional para ser juiz do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Piauí em maio de 2008. Em maio de 2011, virou desembargador do TRF-1. As nomeações para os tribunais regionais federais são feitas pelo presidente da República, a partir de lista tríplice enviada pela própria corte.
Kassio Marques tem ligação com o PT?
Não. Ele foi nomeado pela ex-presidente Dilma Rousseff para o Tribunal Regional Federal da 1ª. Região (TRF-1) em agosto de 2011. Mas esse ato é uma formalidade, uma atribuição do presidente da República, o que não significa que exista relação política entre as partes. Além disso, dezenas de desembargadores e juízes federais foram nomeados durante o governo Dilma. Só no dia 10 de outubro de 2012, por exemplo, a petista nomeou 11 desembargadores da Justiça Federal e dez juízes de Tribunais Regionais Eleitorais. O fato de Marques ter chegado ao TRF-1 durante o governo Dilma, porém, tem sido citado por críticos da indicação do desembargador para o Supremo, principalmente ex-bolsonaristas.

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By valeon