Enem: pandemia acentua abismo entre redes pública e particular

Candidatos que têm acesso a ensino pago e apoio familiar largam na frente na corrida por vaga; para especialista em educação, situação acirrou algo que já é crônico no Brasil

Por RAFAELA MANSUR

  • Enem na pandemia

Maria Eduarda Diniz, 18, conseguiu se adaptar bem à nova rotina de estudos e diz que se sente pronta para fazer o exame em janeiro

  • Enem na pandemia

Letticia Roberta Gomes, 17, começou o ano animada com os estudos, mas não se sente preparada para enfrentar o Enem

A estudante Letticia Roberta Gomes, 17, começou o ano empolgada para se formar, prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e entrar em uma universidade. Mas a pandemia veio e interrompeu as aulas presenciais na rede estadual, que só voltaram dois meses depois, em regime remoto.

Desde então, Letticia acorda todo dia às 8h, estuda por uma hora em casa, se arruma, pega o ônibus para ir trabalhar como aprendiz e, quando retorna, à noite, faz as atividades dos Planos de Estudo Tutorados (PETs) criados pelo Estado, tudo pelo celular, porque não tem computador. Mas o ânimo passou. Mesmo com o Enem adiado para o início de 2021, ela não se sente preparada.

“Foi um baque. Não aprendi nada neste ano. Chego em casa cansada e faço os PETs por conta própria. O único professor da minha escola que faz videoaula é o de física; dos outros, não vi nem vestígio na quarentena. Vou para o Enem despreparada. Se não der certo, tento de novo”, diz Letticia, que está na dúvida se tenta psicologia ou direito.

Estudante do Bernoulli, Maria Eduarda Diniz, 18, que também se prepara para o Enem, conseguiu se adaptar bem à nova rotina. Todos os dias pela manhã, ela assiste às aulas ao vivo ministradas pelos professores online e, à tarde, dedica-se aos livros. Ela sonha em fazer medicina e sente que está pronta para o Enem. “Estou conseguindo conciliar os estudos com momentos para relaxar e fazer atividade física. Os professores estão sendo essenciais”, diz.

As desigualdades entre as redes pública e privada sempre existiram, mas foram acentuadas pela pandemia. Segundo especialistas, os estudantes das escolas do governo serão prejudicados no Enem que, neste ano, recebeu 5,7 milhões de inscrições. Em Minas Gerais, são 577.227.

Professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), José Francisco Soares diz que o Enem já era um jogo de cartas marcadas. “O resultado é muito dependente da escola e da família do aluno”, diz. “A pandemia acirrou algo que já é crônico no Brasil. Embora as escolas públicas tenham feito esforços, os estudantes do terceiro ano foram muito prejudicados, e vamos ver isso no desempenho deles nos testes”, afirma o professor.

Na rede estadual, as atividades foram retomadas no dia 18 de maio, por meio de videoaulas transmitidas diariamente pela Rede Minas. A Secretaria de Estado de Educação também desenvolveu, em parceria com o Sesi, uma plataforma virtual gratuita com aulas online e materiais de apoio e simulados.
Do outro lado, o colégio Bernouli, que teve a maior nota média no Enem no Brasil em 2019, disponibiliza analistas de desempenho pedagógico. “Eles orientam os alunos naquilo que eles precisam melhorar e estabelecem um plano de metas”, diz o diretor pedagógico executivo do grupo Bernoulli Educação, Marcos Raggazzi.

“Continuamos oferecendo tudo o que era ofertado antes: acompanhamento pedagógico e psicológico, monitoria e simulados”, afirma o diretor do Elite Savassi, Judson Lima. “A estrutura social brasileira é muito desigual. Os alunos que têm mais consciência se incomodam muito com isso, porque percebem que a concorrência neste ano com as escolas públicas está tendendo a zero”, relata.

Importância de cotas

Para especialistas em educação, as cotas, que asseguram vagas para estudantes de escolas públicas nas universidades, serão ainda mais importantes e necessárias neste ano de pandemia. A legislação garante a reserva de 50% das matrículas a alunos que cursaram todo o ensino médio na rede pública.

Para o professor emérito da UFMG José Francisco Soares, há desigualdades entre as próprias escolas gratuitas. No caso da universidade, em que a competição é grande em todos os cursos, ele diz que, “mesmo entre os cotistas, os que conseguem a vaga são os que tiveram, por algum motivo, um atendimento melhor”. Segundo Soares, os alunos de escolas técnicas e militares, geralmente, têm vantagens em relação aos de escolas estaduais.

Na UFMG, tem havido crescimento na entrada de alunos com renda familiar de um a dois salários mínimos: em 2014, eles correspondiam a 11,4% do total e, em 2018, a 18,2%. Quase a metade (49,3%) dos estudantes que iniciaram a graduação no primeiro período letivo de 2018 se autodeclararam pretos ou pardos. O percentual é praticamente o dobro do registrado em 2008 (26,75%), ano que antecedeu o início da aplicação das políticas de ações afirmativas na instituição.

De acordo com a própria universidade, as cotas são fundamentais e responsáveis pela democratização do acesso ao ensino superior público. “Hoje, a UFMG está mais inclusiva, em razão de um trabalho articulado e consistente que tem o objetivo de contribuir para a transformação social e para a diminuição das desigualdades. Somos, hoje, uma instituição de ensino superior que tem uma composição discente que representa melhor o perfil da população do país”, afirma a reitora Sandra Regina Goulart Almeida.

Frases

“Percebo que, mesmo com os esforços dos professores, os alunos da rede pública acabaram ficando mais prejudicados, porque não paramos.”
Bruna Sthefani Santos Guimarães, 18
Estudante do pré-vestibular do Elite

“A formação daqueles que têm melhores condições não melhorou em tempos de pandemia, mas a das pessoas mais pobres piorou.”
Teodoro Adriano Zanardi
Professor do Departamento de Educação da PUC Minas

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