‘Sem diminuir o tamanho do Estado, não tem chance de saída’, diz Mendonça de Barros
Sonia Racy – Jornal Estadão
Eterno otimista, desta vez José Roberto Mendonça de Barros* baqueou. Examina o Brasil de alto a baixo e diz sentir “certa falta de suprimento de otimismo”. Não só por causa de uma pandemia onipresente ou pela dívida pública rumo à casa dos 100% do PIB. O País exibe, mais uma vez, a cena de políticos querendo gastar mais. E justo em “um momento em que a estatura da equipe econômica diminuiu muito”. Para completar a paisagem, diz o economista, “a nossa sociedade não gosta de mudar”. O resumo da ópera? “Sem diminuir o tamanho do Estado, se não quebrar um pouco o tamanho das corporações, não tem chance de saída.”
Nos anos 90, Zé Roberto, como o chamam os amigos, levou seus anos de janela como professor na USP para dentro do governo FHC, onde foi secretário de Política Econômica. Também passou pela área de comércio exterior – e hoje é sócio, em São Paulo, da consultoria MB Associados. Nesta entrevista ao programa Cenários, parceria do Estadão com o Banco Safra, ele enfatiza: ao gastar 12% do PIB na pandemia, o Brasil não fez nada de mais. “O que fizemos de menos foi não ajudar as empresas.” Não obstante, o ministro da Economia, Paulo Guedes, “fica sonhando com um crescimento em ‘V’ que não vai acontecer”.
Previsões para o futuro? Ele acha bem possível uma estagflação em 2021 e torce para que se crie uma plataforma de centro, um centro democrático (não o Centrão de hoje). “Esse empoderamento do centro tem de ser construído. O populismo vigente não vai dar certo.” A seguir, os principais trechos da conversa:
© Daniel Teixeira/Estadão ‘O empoderamento do centro tem de ser construído. O futuro do País está ligado a isso’, disse Mendonça de Barros.
Nesses tantos anos lidando com a economia, o sr. sempre se mostrou otimista com o Brasil. Como se sente hoje?
Estou com uma certa falta de suprimento de otimismo. Acho que vivemos um impasse que não é pequeno – e o que me preocupa é que ele ocorre num momento em que a estatura da equipe econômica diminuiu muito. Isso é raro de acontecer.
Em que sentido?
Claramente, o ministro da Economia e sua equipe perderam espaço no governo. Está claro para mim que o ministro perdeu um pouco o rumo das coisas. Repete temas parciais, tipo CPMF, e não enfrenta o que é relevante. À medida que o coronavírus foi se expandindo, a resposta do governo foi adequada: transferir dinheiro para as famílias. Mas o sistema político quer mais, quer estender para 2021 esse mecanismo de transferências, para o qual definitivamente não há dinheiro. Um gasto em torno de 12% do PIB.
Como vê a ideia de unir todos os programas de assistência em um só?
Todas as propostas da equipe econômica para compatibilizar a retomada de controle fiscal com os desejos do presidente foram sumariamente rejeitadas. Assim como o corte de gastos nas folhas de pagamento do setor público. O que ficou aberto foi aumentar os impostos. Então, temos um impasse criado. A política quer aumentar os gastos, e os ministérios querem milhões para fazer obras públicas. E o presidente resolveu que só vai olhar isso depois da eleição municipal. Portanto, vamos chegar a dezembro sem a menor ideia de para que lado se vai.
Pela primeira vez depois do Plano Real, ouço falar em ameaça de inflação. Vamos ter uma guinada para trás?
Creio que ainda não é o caso. Temos no sistema econômico uma coisa que eu chamo de “bandeirinhas”, que nos alertam quando temos um problema. E quais são as relevantes? A primeira é a taxa de juros, a segunda é a cotação do dólar: o real está muito desvalorizado. Tem uma terceira que é um pouco resultado da primeira e da segunda, que é que o Tesouro Nacional, ao fazer a rolagem da dívida pública, fica frente a um dilema e tem de ir para o papel curto. Só que, ao fazê-lo, o caixa vai diminuindo. Ele já usou R$ 150 bilhões da reserva, o CMN permitiu transferir do BC para o Tesouro R$ 325 bilhões do resultado do lucro das operações cambiais, e ele já usou. Isso já vimos no passado: toda vez que você começa a encurtar o prazo da dívida, é porque tem algum problema. A quarta “bandeirinha”, mais nova, é a entrada de investimentos estrangeiros. É preocupante ver que não há investimento de fora, as pessoas não estão confortáveis com o que estão vendo. Tirando alguns casos específicos, e alguns soluços no caminho, ninguém vai investir; e não é só o estrangeiro.
Professor, por que a produtividade no Brasil é um problema recorrente?
A melhor maneira de entender isso é pegar um pedaço da economia onde ela não é problema: o agronegócio. Nele, a produtividade do sistema não para de crescer. E por quê? Porque nesse setor a ciência, a busca de melhorias, existe há 50 anos sem parar. Mas se você vê o setor urbano, a produtividade não mudou. Boa parte do comércio de tecidos e da construção civil de prédios funciona exatamente como há 50 anos. E uma parte dos nossos empresários e federações sempre querendo ir a Brasília arrumar uma moleza fiscal ao invés de brigar por produtividade.
O nosso problema é cultural ou é falta de incentivo?
Primeiro, a nossa sociedade não gosta de mudar, ela muda com um pé no abismo. O próprio sistema político foi desenhado para não mudar, pois com dezenas de partidos é impossível gerar maiorias estáveis. Outro exemplo é a inflação. Foi preciso chegar à hiperinflação para que aparecesse uma iniciativa que desse certo. Mas há duas coisas às quais não chegamos ainda porque não estamos no abismo. Uma é que o tamanho do Estado passou do ponto. Outra coisa é que você não consegue organizar o sistema político para crescer se não mobilizar, em torno dele, algumas ideias de um “modelo de crescimento”, uma estratégia.
Que tipo de estratégia?
Tem de ter uma visão de mundo que aponte quais os puxadores do crescimento. Os asiáticos se plugaram no Japão. A Europa Oriental se plugou na Alemanha. E nós deveríamos ter feito um projeto decente de Mercosul ao invés dessa competição tola. Esse protecionismo que muitos pedem ficou velho. Minha percepção é que vamos sair da recessão para uma certa estagflação, um crescimento baixo.
Há anos que entrevisto o sr. e nunca o vi tão desanimado. Tem chance de 2021 ser um ano razoável?
Parece que saímos da recessão e que em 2021 teremos PIB positivo, de 2,2%. Mas é raso. A recuperação só aconteceu por causa do coronavoucher. Mas teria de crescer a demanda, produção, folha de salários – e isso não está ocorrendo. E o desemprego vai subir porque muita gente vai sair de casa e procurar emprego. Nós projetamos um desemprego passando dos 16%.
O que houve de errado na condução da briga contra o coronavírus?
Países onde o chefe de Estado negou que o vírus era sério lidaram mal com o problema. Trump é igualzinho a Bolsonaro e eles são iguaizinhos ao presidente da África do Sul, todos atuando desastradamente. Veja, o Brasil gastou 12% do PIB. O FMI calcula que o mundo gastou os mesmos 12% do PIB. Não fizemos menos, nem mais. O que fizemos de menos foi não ajudar as empresas. E não temos uma política econômica consistente. Mas o nosso ministro da Economia fica sonhando com crescimento em ‘V’, que não vai acontecer.
Talvez eles corram agora atrás da produtividade…
Exatamente, e a favor da sustentabilidade, da educação, da produtividade. Mas se não diminuir o tamanho do Estado, quebrar o tamanho das corporações, não temos chance.
Faria sentido fazer um plebiscito sobre isso, já que o nível de conscientização aumentou?
O que eu espero, dentro das regras democráticas, é que perto da sucessão de 2022 essas coisas fiquem mais claras. Especialmente se o cenário de estagflação se materializar, não vai ser esse passeio a reeleição. Com um governo desarranjado como esse, que não tem proposta para nada, que só pensa em armas. Espero que, com a mobilização de grupos cívicos, se consiga formar uma plataforma de centro. A esquerda se radicalizou, a direita radical está fazendo um desastre, então esse empoderamento do centro tem de ser construído. Que não é esse Centrão de Brasília, mas um centro democrático que pare, pense. O futuro do Brasil está ligado a isso. Esse populismo que temos não vai dar certo.
*ECONOMISTA, SECRETÁRIO DE POLÍTICA ECONÔMICA (1995 A 1998), SECRETÁRIO DA CÂMARA DE COMÉRCIO EXTERIOR DA PRESIDÊNCIA (1998) E PROFESSOR DE ECONOMIA DA USP POR MAIS DE 30 ANOS.