Biden detalha medidas e Trump sofre pressão interna para admitir derrota
Campanha de democrata aponta quatro ações prioritárias: combate à pandemia de coronavírus, recuperação econômica, igualdade racial e mudanças climáticas; ex-presidente George W. Bush felicita vencedor e eleva número de republicanos que reconhece revés
Beatriz Bulla, correspondente, O Estado de S.Paulo
WASHINGTON – O presidente eleito dos EUA, Joe Biden, começou a trabalhar na transição de governo e atualizou neste domingo, 8, tem os planos de ação em um site que deve informar a população sobre o trabalho feito até a posse. Já o presidente Donald Trump voltou a questionar a lisura do processo eleitoral americano e não reconheceu a vitória do opositor, enquanto parte dos republicanos o pressiona para admitir a derrota.
A campanha de Joe Biden informou através do novo site as quatro prioridades imediatas de seu governo: o combate à pandemia de coronavírus, a recuperação econômica, igualdade racial e mudanças climáticas.
Entre as medidas já informadas do projeto de controle do vírus estão: dobrar o número de locais de teste de covid em sistema drive-thru e “imediatamente restabelecer” a relação dos EUA com a Organização Mundial da Saúde, “que – embora não seja perfeita – é essencial para coordenar uma resposta global durante uma pandemia”, diz o plano.
O presidente eleito Joe Biden e a vice-presidente eleita, Kamala Harris Foto: Erin Schaff/The New York Times
Sobre mudanças climáticas, o time de transição informa que “Biden sabe como se posicionar ao lado dos aliados dos EUA, enfrentar adversários e se nivelar com qualquer líder mundial sobre o que deve ser feito. Ele não apenas voltará a comprometer os EUA com o Acordo de Paris – ele irá muito além disso”.
Durante a campanha, Biden afirmou que vai recolocar os EUA no Acordo climático de Paris no primeiro dia de seu governo. “Ele está trabalhando para liderar um esforço para fazer com que todos os principais países aumentem a ambição de suas metas climáticas domésticas”, diz o site. Em debate com o presidente Donald Trump, Biden falou que pretende reunir países para oferecer um fundo ao Brasil para comprometimento com a preservação da Floresta Amazônica.
O presidente eleito não teve compromissos públicos no domingo. Ele foi à igreja católica que frequenta em Wilmington, cidade onde vive. De lá, atravessou a rua para uma visita ao cemitério onde estão enterrados seu filho Beau, sua primeira mulher, Neilia, e a terceira filha, Naomi. Já Trump passou 4 horas e meia no seu clube de golfe, enquanto publicava mensagens no Twitter. Ele voltou à Casa Branca no meio da tarde. As únicas manifestações do republicano nos últimos três dias foram pelas redes sociais.
Em uma postagem no Twitter, Trump publicou na manhã de domingo uma fala do criminalista Jonathan Turley sobre a suposta “história de problemas eleitorais” no país. O presidente argumenta que houve fraude na eleição, mas segue sem apresentar provas. “Devemos olhar para os votos. Estamos apenas começando o estágio de tabulação. Devemos examinar essas alegações. Estamos vendo uma série de declarações de que houve fraude eleitoral”, teria dito Turley, segundo a publicação de Trump.
Também na rede social, Trump questionou o fato de a imprensa ter informado o resultado da eleição. Sem um órgão eleitoral centralizado como o Tribunal Superior Eleitoral brasileiro, o anúncio de vitória do presidente dos EUA é tradicionalmente feita pela mídia a partir dos dados de votos contabilizados fornecidos por cada Estado.
A agência de notícias Associated Press é reconhecida por projetar o presidente vencedor desde 1848 nos EUA. Em 2016, a agência declarou Donald Trump como vitorioso às 2h29 da madrugada posterior ao dia da eleição. Trump não questionou o fato de a imprensa anunciar o resultado na ocasião.
Pressão.
Cresce a pressão nos bastidores do Partido Republicano para que Trump reconheça a vitória de Joe Biden, embora publicamente o partido permaneça dividido. A principal manifestação do domingo partiu do ex-presidente George W. Bush. Ele é o único ex-presidente republicano vivo e, ao felicitar Biden e Kamala pela vitória, disse que “o povo americano pode confiar que essas eleições foram fundamentalmente justas, sua integridade será mantida e seu resultado é claro”.
O republicano e ex-governador de New Jersey Chris Christie disse em uma entrevista ao canal ABC que a resistência em parte do partido em reconhecer a vitória de Biden se deve ao fato de Trump insistir na ideia de contestar a eleição. “Se sua base para não admitir (a derrota) é que houve fraude eleitoral, mostre-nos. Porque se você não pode nos mostrar, nós não podemos fazer isso. Não podemos apoiá-lo cegamente sem evidências”, afirmou Christie, um aliado do presidente.
O senador pelo Estado de Utah e candidato à presidência em 2012 pelo Partido Republicano, Mitt Romney, disse que Biden é um “homem de caráter” e que pretende estabelecer um bom relacionamento com ele. Mas disse esperar que Trump “aceitasse o inevitável”. “Ele é quem ele é e tem uma relação relativamente relaxada com a verdade, então vai lutar até o fim”, disse. / Com NYT e W. Post
Governo Joe Biden: como devem ser os primeiros 100 dias
Democrata terá de enfrentar problemas urgentes e tentar unir um país ainda mais polarizado após a campanha eleitoral
Felipe Resk, O Estado de S.Paulo
O democrata Joe Biden deve enfrentar uma série de desafios já nos 100 primeiros dias de governo. Segundo analistas, a prioridade imediata é encontrar soluções para a crise do coronavírus, responsável por graves efeitos econômicos e por colocar os Estados Unidos à pior posição do mundo no número de mortes e infecções. O novo presidente vai ter de lidar ainda com pressões para pacificar um país internamente rachado e ainda reverter ações do seu antecessor na política internacional.
Com mais de 235 mil mortes e 9 milhões de casos de covid, a expectativa é que, uma vez na Casa Branca, Biden consiga implementar um plano nacional para controlar os efeitos da crise de saúde. “Este é o problema mais urgente”, avalia o cientista político David Fleischer, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB). “A pandemia está derrotando Trump e justamente agora, às vésperas da eleição, há um novo surto em vários Estados. Durante a campanha, a fala de Biden foi muito forte no sentido de que o coronavírus tem sido tratado com negligência.”
No programa de governo, Biden defende ampliar a capacidade de testes e de rastreamento – estratégia indicada por cientistas para identificar focos ativos da doença, conseguir isolá-los e reduzir a taxa de transmissão. Também promete vacinação gratuita assim que um dos imunizantes se mostrar eficaz e seguro.
O candidato à presidência dos Estados Unidos pelo Partido Democrata, Joe Biden Foto: Tom Brenner/REUTERS
Para recuperar a economia, o plano ainda prevê socorro a famílias em dificuldade financeira e investimento de mais de US$ 2 trilhões (R$ 11,5 trilhões) nos próximos quatro anos, com foco em energia limpa e indústria. Especialistas analisam, no entanto, que é cedo para saber o quanto Biden será capaz de articular as mudanças legislativas necessárias com o Congresso.
No melhor dos cenários para os democratas, além de vencer a eleição presidencial, o partido conseguiria manter o controle da Câmara e inverter o quadro no Senado, hoje com mais cadeiras ocupadas por republicanos.
“Tudo depende de que tipo de oposição vai existir no Congresso. Há grandes chances de ele conseguir maioria e ter mais latitude para aprovar pacotes legislativos”, afirma o professor de relação internacionais da FAAP Carlos Poggio. “Com os gastos por causa do coronavírus, o ponto central será como Biden vai tratar a questão fiscal e quais aumentos de impostos vão passar.”
Visto como moderado, Biden também precisa lidar com demandas de uma crescente ala mais à esquerda dentro do partido. Para contemplá-la, é possível que tenha de nomear integrantes do grupo para sua equipe, segundo afirmam especialistas. Em contrapartida, há integrantes do partido republicano que se voltaram contra Trump, declararam apoio a Biden e são especulados no gabinete.
“Ele (Biden)vai ter uma grande dificuldade para conseguir equilibrar esses interesses”, analisa Poggio. “Vejo a possibilidade de uma crescente divisão dentro do partido, uma vez que membros mais radicais podem ficar decepcionados. Isso pode levar à fragmentação dos democratas.”
Alianças que Trump desfez serão retomadas
Na política externa, a expectativa é que Biden retome alianças tradicionais e trabalhe para “passar uma borracha” nos atos do atual presidente. Entre as medidas esperadas, está a reaproximação dos Estados Unidos com países da Europa, a volta a acordos pelo clima e o apoio à Organização Mundial de Saúde (OMS) e ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, relações desfeitas por Trump.
“Biden será muito pressionado, tanto por demandas internas quanto por forças externas, para rapidamente se manifestar nesse sentido”, avalia Fernando Rei, professor de direito ambiental da FAAP. Espera-se, por exemplo, que o democrata cumpra a promessa feita durante a campanha de voltar ao Acordo de Paris, pelo qual 195 nações se comprometem a reduzir emissões de gases estufa.
Segundo pesquisadores, a possível troca na presidência também pode impactar nas relações com o governo Jair Bolsonaro, aliado de Trump. No primeiro debate eleitoral, em setembro, Biden chegou a mencionar as queimadas na Amazônia. “Com relação aos efeitos dessa agenda, se o Brasil não tiver uma mudança de postura pragmática, naturalmente sofrerá mais pressões dos Estados Unidos e da União Europeia, inclusive com repercussões para ratificação do acordo com o Mercosul”, diz Rei.
Professor de Relações Internacionais da FGV-EAESP, o cientista político Guilherme Casarões avalia que o democrata terá de recorrer a “muito esforço diplomático” para “desconstruir a obra de Trump”. “Muitas lideranças europeias estão entusiasmadas com Biden e isso pode acelerar o passo para a ‘volta à normalidade’”, afirma. “Um dos grandes desafios será na América Latina, onde o cenário é mais complicado e existem governos à direita que criaram vínculo muito forte com Trump.”
O democrata Joe Biden foi vice-presidente de Barack Obama Foto: Angela Weiss/AFP
Para os especialistas, a eleição de Biden representa uma oportunidade de os Estados Unidos retomarem o acordo nuclear com o Irã, o que ajudaria a arrefecer as tensões com o Teerã, conforme também prometeu o democrata. Por sua vez, compromissos firmados por Trump para aproximar Israel de países árabes são vistos como um vespeiro em que dificilmente um novo governo conseguiria interferir.
A guerra comercial com a China aparece no centro da política externa americana e é vista como uma disputa acima de questões de governos. Na análise de cientistas políticos, a mudança na presidência poderia até deixar o conflito menos volátil, mas não representaria uma solução definitiva.
“Biden deve pegar uma China muito maior e mais assertiva do que Trump pegou em 2016, então vai ter de trabalhar bastante para recuperar espaços econômicos que os Estados Unidos perderam”, avalia Casarões. “A questão vai ser: como competir sem antagonizar com a China? Ele vai precisar encontrar um equilíbrio, correndo o risco de acabar saindo como um presidente fraco para o público interno.”
Um país dividido que precisa de união
Internamente, o perfil mais ao centro de Biden é considerado um trunfo para tentar reunificar um país dividido. Os desafios incluem o aumento de conflitos entre grupos supremacistas e movimentos antirracistas nos Estados Unidos, onde uma onda de protestos ganhou força após George Floyd, um negro que foi asfixiado por um policial branco.
Coordenadora de política externa da Conectas, organização de defesa dos direitos humanos, Camila Asano afirma que, se eleito, dificilmente Biden vai poder escapar do tema no discurso oficial. “Ele deve herdar um país polarizado e com a divisão incentivada pelo populismo de Trump”, diz. “Falar sobre racismo estrutural é tocar em uma ferida profunda dos Estados Unidos. Ele vai ter de trabalhar para que as pessoas entendam que defender minorias é o melhor para o interesse da maioria.”
Há expectativa de que o democrata submeta ao Legislativo um pacote para reformar a atuação policial – possibilidade, contudo, que pode perder força dependendo da atmosfera no Congresso. Também são aguardadas alterações na política migratória, que no governo Trump ficou marcada pelo discurso de “tolerância zero” a imigrantes ilegais e até por cenas de crianças sendo separadas dos pais. Para os especialistas, no entanto, o que Biden fará com o muro em construção na fronteira com o México continua sendo uma incógnita.