Império Otomano, potência marítima no Mediterrâneo

Por

João Lara Mesquita

Império Otomano, (desconhecida) potência marítima no Mediterrâneo

Quando pensamos nas potências que já dominaram os oceanos lembramos de Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra e, a partir do século 20, os Estados Unidos. Entre os antigos evocamos os vikings, fenícios, gregos e romanos. Mas, e os otomanos? O Império Otomano também dominou o mar. Mas, curiosamente, este poder não é associado à supremacia marítima. A Batalha de Lepanto (1571) prova o contrário: foi uma disputa decisiva entre cristãos e otomanos, o oriente e o ocidente, pelo controle do Mediterrâneo.

A frota do império otomano chegando em Malta.

O Mediterrâneo cristão

Para o historiador inglês Roger Crowley, “do século 11 ao 15, a cristandade, no ímpeto das cruzadas, tinha dominado o Mediterrâneo. Havia criado um mosaico de pequenos estados na costa da Grécia e nas ilhas do mar Egeu, que ligava o empreendimento dos cruzados ao Ocidente Latino. A direção da conquista começava a reverter quando os cristãos perderam o último ponto de apoio importante no litoral da Palestina, em 1291, com a queda de Acre. Agora, o Islã estava prestes a revidar”.

O Império otomano

Configurou-se com a queda de Constantinopla, em 1453. Começava o apogeu do império que durou até o fim do século 17. Durante os séculos 15 e 16, o Império Otomano tornou-se uma potência. Cobria boa parte do Oriente Médio, Leste Europeu e norte da África. Mas, em seguida à queda de Constantinopla,  o “Mediterrâneo tornou-se o epicentro de uma guerra mundial. Ali o islamismo e o cristianismo travaram uma das mais ferozes e caóticas disputa da história europeia”, diz Crowley.

O teatro da guerra.

A galera a remo, a principal arma

“O Mediterrâneo tornou-se uma biosfera de violência caótica, onde o islamismo e o cristianismo entraram em confronto com ferocidade inigualável. Seus campos de batalha eram a água, as ilhas e as praias, onde eventos eram condicionados pelo vento e pelo tempo; sua principal arma, a galera a remo”.

‘Galera a remo, o instrumento da violência’

“Essas embarcações de pequeno calado, rápidas e vulneráveis eram as máquinas de guerra do Mediterrâneo. Elas ditavam absolutamente como, de onde e quando as batalhas poderiam ser travadas.

Galera veneziana ao tempo da batalha de Lepanto.

Sua estrutura lhes dava a vantagem de facilmente abicar para operações anfíbias, ficar de emboscada perto da costa e girar em torno de um navio pesado, cujo poder de manobra era limitado pelos ventos incertos no mar.”

Navegabilidade das galeras

“Era restrita, dependia do abastecimento de água doce para os remadores. Por isso eram umbilicalmente ligadas à terra. Elas precisavam ser levadas à praia todos os dias…sua faixa de operação era limitada e sua utilização, sazonal. As tempestades de inverno obrigavam que o combate fosse suspenso todo ano, entre outubro e abril.”

Galera maltesa do período da batalha de Lepanto.

Galeras: ‘o dínamo da guerra marítima era o trabalho humano’

“Dentre todas as motivações para a escravatura no século 16, a captura de homens para os bancos de remos tinha importante papel. No auge do poder veneziano, no século 15, as galeras eram remadas por voluntários. No século 16, a força muscular era, em geral, recrutada.”

‘Remadores, sua única função era trabalhar até a morte’

“A marinha otomana contava com uma leva anual de homens das províncias de Anatólia e da Europa. Todos trabalhavam acorrentados. Escravos capturados, criminosos e, nos navios cristãos, mendigos tão carentes que se vendiam aos capitães das galeras.”

“Eram estes miseráveis, acorrentados a um banco de 30 centímetros, que tornaram possíveis as guerras no mar. Sua única função era trabalhar até a morte. Com pés e mãos agrilhoados, excretando onde se sentavam, alimentados com quantidades escassas de biscoitos secos e tão sedentos que, por vezes, eram forçados a beber água do mar. A vida de um escravo de galera podia ser curta e amarga.”

Trabalhar até a morte.

‘Toque do tambor e o chicote do feitor’

“Os homens, vestindo apenas calça de linho, eram esfolados pelo sol e privados de sono no estreito banco, o que os levava à loucura. O toque do tambor e chicote do feitor deixava-os além do ponto de exaustão durante longos períodos quando um navio tentava capturar ou escapar de outro. Era o menos tolerável e o mais temido trabalho de um homem privado de liberdade, escreveu o inglês Joseph Morgan, evocando a visão de…

colunas e fileiras de pobres miseráveis seminus, esfomeados, meio curtidos, acorrentados a uma prancha, de onde não saíam em momento algum por meses…impelidos, acima dos limites da força humana, por golpes cruéis e repetidos na pele nua, a não interrompes o mais violento de todos os exercícios.

As superpotências da época

No período que destacamos, duas eram as superpotências. Pelo ocidente, o Sacro Império Romano, sob domínio dos Habsburgos; pelo oriente, o Império Otomano, nas mãos de Solimão I, bisneto de Mehmet, o conquistador de Constantinopla. E muitas as potências, entre elas a França, Inglaterra, a Russia de Ivan o Terrível, o Irã do xá Ismail, e a Índia do imperador mongol Akbar.

O declínio do Ocidente

“Ficou claro durante a década de 1550 que, centímetro a centímetro, Carlos (do Sacro Império Romano) estava perdendo a guerra. Problemas com protestantes da Alemanha, guerra com a França, dívidas que nem o ouro da América conseguia saldar.”

“O imperador, ocupado em sustentar o peso de seu império, não deu atenção ao mar. Em 1556 ele abdicou da Coroa espanhola em favor do filho Felipe, e se recolheu a um mosteiro. O desastre final de seu reinado ocorreu no verão de 1558: uma expedição espanhola foi aniquilada no Magreb.”

“A esta altura Solimão já havia afirmado a própria satisfação por ter vencido a disputa com seu grande rival. Em 1547, ele assinou uma trégua com Carlos e seu irmão Fernando, que concordou em pagar uma verba anual para seus territórios húngaros, o que, aos olhos de Solimão, o reduziu ao status de vassalo…”

O avanço do Império otomano

As cartas estavam na mesa. E não eram boas para cristãos. Em 1559, Felipe II substituíra seu pai herdando a Coroa espanhola. Surgiu novo plano para enfrentar o Magreb.

Ele envolvia retomar o estratégico porto de Trípoli, e recuperar o eixo no mar. Em dezembro de 1559 a frota, composta por 50 galeras e 6 mil homens, se estabeleceu na ilha de Djerba, próxima a Trípoli. Não demorou para o revide. Os otomanos, com 86 galés sob comando de Piyale Paxåa, surgiram.

O almirante Piyale Paxåa.

“As galés cristãs foram tomadas uma a uma, e cinco mil soldados foram mortos em combate. Os comandantes aristocráticos, poupados, foram enviados como troféus com as galeras capturadas para Solimão. Em Djerba, os muçulmanos construíram uma pirâmide com os ossos dos mortos, a ‘fortaleza das caveiras’, que ainda estava lá no século 19.”

A frota vitoriosa de Piyale Paxá

“Em outubro de 1560, a frota vitoriosa chegou ao Corno de Ouro (estuário que divide o lado europeu da então Constantinopla). O diplomata flamengo Busbecq testemunhou um espetáculo ‘tão agradável para os olhos dos turcos quanto grave e lamentável para cristãos’.

“Solimão surgiu ‘a fim de ver mais perto a armada quando esta apareceu expondo os comandantes cristãos. A procissão fora organizada para demonstrar a supremacia do poder marítimo otomano. As galés otomanas estavam pintadas de vermelho e verde.”

“As embarcações cristãs capturadas tinham sido despojadas dos mastros e remos, para parecerem pequenas, disformes e desprezíveis quando comparadas às turcas. O poder naval otomano estava no apogeu. Se houve um momento em que se pode dizer que um dos lados controlou o mar incontrolável, o momento foi esse.”

Batalha de Lepanto, clímax de mais de 100 anos de confrontos

Desde a queda de Constantinopla, os otomanos fustigavam cristãos no Mediterrâneo. E se fortaleciam no mar. Aos poucos, anularam a potência marítima de então, Veneza. A situação ficou crítica.

Em 1522, a posse da ilha de Rodes, “último posto avançado das cruzadas latinas”, mudou de mãos. Pertencia aos cristãos desde 1307, mas agora era parte do império otomano. Em seguida, o desastre no Magreb. Sobrou para os cristãos a ilha de Malta, de onde saíram para o último e decisivo round, a batalha de Lepanto.

Batalha de Lepanto, pintura de Paolo Veronese

Importância estratégica da ilha de Malta

“Malta era muito central, muito estratégica e muito problemática para ser ignorada por tempo indeterminado. A ilha representava uma oportunidade de controlar o centro do mar e uma ameaça permanente ao domínio de Solimão sobre suas posses do Norte da África… ambos os lados compreendiam que Malta era a chave para o Mediterrâneo central. A máquina de guerra otomana começou e entrar em ação”.

Navios, e as forças, de ambos os lados: Império Otomano e cristãos

Cerca de 600 navios participaram da peleja. Do lado cristão, eram 202; do otomano, 400. Isso dá uma pequena amostra do quanto os otomanos se desenvolveram no mar desde a queda de Constantinopla 118 anos antes. C

rowley descreve: “A escalada da coisa ofuscou todas as previsões. Cerca de 140 mil homens – soldados, remadores e tripulantes – em cerca de seiscentos navios, algo superior a setenta por cento de todas as galeras a remo do Mediterrâneo”.

A frota do Império Otomano se aproxima de Malta

“A 15 ou 20 quilômetros de Malta a armada turca era claramente visível. Velas enfunadas, de modo que o tecido de algodão branco cobria metade do horizonte para o leste, registrou Giacomo Bosio.”

“O espetáculo era de tirar o fôlego: centenas de navios em desenho de vastidão crescente e adentrando o mar calmo – 130 galeras, 30 galeotas, 9 batelões de transporte, 10 grandes galeões, 200 embarcações de transporte menores, 30 mil homens.”

Afresco do vaticano mostra a formação na Batalha de Lepanto.

‘Eu vi o lugar miserável onde a batalha ocorreu’

7 de outubro de 1571. A descrição é do cronista otomano Peçevi: “Eu vi o lugar miserável onde a batalha ocorreu…Nunca houve uma guerra tão desastrosa em terra islâmica, nem todos os mares do mundo este que Noé criou os navios.”

“Cento e oitenta embarcações caíram em mãos inimigas, com canhões, espingardas e outros recursos materiais de guerra, escravos de galera e guerreiros islâmicos. Todas as outras perdas foram proporcionais. Havia 120 homens mesmo nos menores navios. Com isso o cômputo total de homens perdidos foi de 20 mil.”

A batalha de Lepanto na visão do pintor Andries van Eertvelt (1590-1652).

O comandante da frota turca foi morto. “derrubado por um tiro de arcabuz; um soldado espanhol cortou-lhe a cabeça e levantou-a no alto de uma lança. Houve gritos de vitória…”

‘Lepanto, Trafalgar da Europa’ e o fim do domínio marítimo do Império Otomano

‘…Um evento sinalizador tomou conta de todo o continente cristão. O papado declarou que 7 de outubro, daquele momento em diante, seria dedicado a Nossa Senhora do Rosário. Jaime VI, da Escócia, inspirou-se para compor 1.100 versos do burlesco latino. As guerras turcas se tornaram assunto para dramaturgos ingleses. Otelo, por exemplo, volta de uma batalha em Chipre travada contra ‘o inimigo general otomano’.

‘Na Itália, os grandes pintores do período criaram telas monumentais. Ticiano retratou Felipe erguendo o filho recém-nascido para a Vitória alada. Tintoreto representou Sebastiano Vernier, rude e barbado, diante de cena semelhante. Vasari, Vicentino e Veronese produziram enormes cenas de batalha confusas, cheias de fumaça, fogo e homens afogando-se, tudo iluminado por mais de luz do céu cristão…”

Galera maltesa

Miguel de Cervantes,  participou da batalha de Lepanto

Mais tarde, ao escrever sua obra prima, ele “põe na boca de Dom Quixote uma expressão de como as poucas horas em Lepanto tinham feito a diferença: ‘Naquele dia tão venturoso para a cristandade…se desenganaram as nações de que os turcos não eram invencíveis no mar’.

Ele serviu a bordo de um navio: “No Marquesa, o espanhol Miguel de Cervantes, com 24 anos, erudito e desesperadamente pobre, era voluntário. Na manhã da batalha, ele estava doente, com febre, mas cambaleou de sua cama para comandar um destacamento  de soldados na estação de barcos.”

Durante o conflito, Cervantes “foi atingido no peito por dois tiros de arcabuz e permanentemente mutilado da mão esquerda”.  Ele resumiu o estado de espírito cristão, e confirma o medo da cristandade pelo império marítimo otomano: ‘O maior evento testemunhado na era passada, presente, e futura”.

Império otomano – Fonte: Impérios do Mar, A Batalha Final Entre Cristãos E Muçulmanos Pelo Controle Do Mediterrâneo, 1521 – 1580. Autor, Roger Crowley, editora, Três Estrelas.

Roger Crowley: Historiador britânico formado na Universidade Cambridge.

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