Selo de mau pagador
No total, dívidas do Brasil com organismos internacionais somam mais de R$ 4 bilhões
Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
É estonteante a capacidade de Brasília de implodir pontes que ligam o País à comunidade internacional. O presidente da República e alguns de seus principais ministros, a começar pelo das Relações Exteriores, insultam rotineiramente líderes internacionais; escarnecem de preocupações literalmente vitais à sociedade global, como o meio ambiente ou a pandemia; ameaçam conquistas históricas, como o acordo Mercosul-União Europeia; insistem na vassalagem a um demagogo já rejeitado pelo seu povo; provocam arbitrariamente parceiros comerciais seminais, como a China ou a Argentina; ameaçam países vizinhos, como a Venezuela; sabotam recursos internacionais, como os do Fundo Amazônia; e reduzem o Itamaraty a uma trincheira de suas guerrilhas ideológicas contra conspiradores imaginários.
Mas não se pode limitar o conjunto da obra de destruição ao desvario de Jair Bolsonaro. O Congresso acaba de negar ao Ministério da Economia as verbas necessárias para quitar os compromissos em atraso do País com organismos internacionais como a ONU e suas agências.
Em 2019, o Brasil quase perdeu o direito a voto na Assembleia-Geral, pagando às pressas sua dívida com a ONU. Na análise das contas federais do ano passado, o Tribunal de Contas da União alertou o governo sobre a grande diferença entre os compromissos internacionais pendentes e a dotação orçamentária para quitá-los, com risco de infração ao artigo 167 da Constituição, que proíbe a realização de despesas sem previsão no Orçamento.
Neste ano, o governo federal reincidiu na barbeiragem, e deixou para a última hora o provimento de recursos para quitação dos compromissos nacionais com organismos como a OMS, Unesco, OEA, OIT, além de 13 missões de paz, 8 bancos multilaterais, fundos internacionais e outras 106 organizações internacionais. No total, as dívidas somam mais de R$ 4 bilhões.
Para cumprir parte desses compromissos e garantir prerrogativas mínimas, como o direito a voto na Assembleia-Geral da ONU, o Ministério da Economia solicitou ao Congresso um crédito de R$ 1,235 bilhão. Mas a menos de dois meses do vencimento das dívidas, o Parlamento rejeitou o pedido. Por uma deplorável ironia, enquanto as pontes internacionais esboroam a olhos vistos, os recursos foram redirecionados ao Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) para bancar obras de pavimentação e compra de máquinas apadrinhadas por congressistas.
Todo o episódio é uma verdadeira comédia de erros. Primeiro, há a irresponsabilidade dos parlamentares, ávidos por granjear recursos para as suas praças em época de eleições, mesmo que em flagrante prejuízo dos interesses nacionais. Depois, há a inépcia do Ministério da Economia, que incluiu na mesma solicitação de crédito as contribuições que beneficiavam o MDR, abrindo uma brecha para a manobra do Congresso. Por fim, há a crônica desarticulação do governo com as bases parlamentares.
Agora, conforme apurou o Estadão/Broadcast, a equipe econômica trabalha no afogadilho para utilizar algum projeto de lei de crédito suplementar ainda em tramitação para efetuar novo remanejamento, cortando despesas orçamentárias que não serão executadas, para dar lugar à liquidação de parte daqueles compromissos internacionais.
Se malograr, será uma desmoralização sem precedentes para a política externa. Mas mesmo que consiga, a imagem do País já está arranhada. No mínimo é mais um sinal às autoridades e investidores internacionais da incúria do País em honrar seus compromissos. O quiproquó é injustificável, mesmo pelo choque da pandemia, já que essas dívidas estão contratadas há anos.
Enquanto se multiplicam por todo o planeta os apelos à cooperação multilateral para combater o vírus e a catástrofe econômica precipitada por ele, o Brasil caminha a passos largos rumo ao isolamento. Não é esta a vocação do Brasil e dos brasileiros.