A volta do debate que importa
Só existem a boa política, que respeita os fatos e oponentes, e a má, que nega a realidade
João Gabriel de Lima*, O Estado de S.Paulo
Para que serve um governo? Cuidar das pessoas ou cuidar das empresas? É possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo?
São perguntas que simplificam uma questão complexa — mas que resumem, com clareza, o debate brasileiro nos últimos oitenta anos.
A ideia vitoriosa nas duas ditaduras brasileiras do século passado, a de Getúlio Vargas e a dos militares — e também do período democrático entre elas — foi o nacional-desenvolvimentismo. Segundo essa corrente, cabia ao governo subsidiar setores da economia escolhidos a dedo.
De Getúlio aos militares, os governos criaram copiosamente companhias terminadas em “brás” e incentivaram indústrias como a automobilística. Cuidaram das empresas – estatais e privadas –, mas não dos cidadãos. O baixo investimento em educação mostra isso de forma eloquente. Durante a ditadura de Vargas, o valor oscilou entre 1% e 1,5% do PIB. Entre 1955 e 1975 subiu só um pouco, para 2%. Saúde pública também nunca foi prioridade nos dois regimes autoritários.
Veio a redemocratização, e os brasileiros, representados pelos constituintes de 1988, decidiram que os governos deveriam cuidar das pessoas. Saiu de cena o nacional-desenvolvimentismo e começou a era social-democrata. Ela teve seu auge nos governos de Fernando Henrique e Lula. No ciclo tucano-petista, criaram-se o Sistema Único de Saúde, os programas de combate à pobreza, e o gasto com educação mais que dobrou, saltando para o patamar de 4,5% do PIB.
O debate sobre a função do Estado – cuidar das empresas ou cuidar das pessoas? – foi retomado recentemente a propósito do livro “O Dever da Esperança”, de Ciro Gomes. Em um ensaio crítico sobre a obra, o economista Samuel Pessoa, defensor da postura social-democrata, argumentou que, num país de orçamento apertado como o Brasil, não dá para cuidar das pessoas e das empresas ao mesmo tempo. O desfecho inevitável é a insolvência do País. Na era Dilma Rousseff, que se dizia desenvolvimentista, uma recessão brutal jogou milhões de brasileiros na pobreza.
Nélson Marconi, que participou da formulação do programa de Ciro na última eleição presidencial, defende que o desenvolvimentismo, em sua versão moderna, nada tem a ver com estourar orçamentos ou criar estatais. Ele acha possível o governo cuidar das pessoas e das empresas mantendo-se na trilha da responsabilidade fiscal – Marconi é um crítico da gastança do período Dilma.
(Existe uma terceira corrente, a liberal, que defende a redução do Estado para soltar as amarras da economia. Nunca fez muito sucesso no Brasil. Alguns liberais apoiaram o presidente Jair Bolsonaro mas, sentindo-se ludibriados, desertam dia após dia, como mostra a reportagem anexada à versão digital da coluna).
Os brasileiros têm gastado muito tempo discutindo temas irrelevantes, como um suposto “perigo comunista” ou a falsa oposição entre a “velha” e a “nova” política. Existem apenas a boa política – aquela baseada no respeito aos fatos e aos oponentes – e a má, que nega a realidade e desqualifica quem pensa diferente.
Passou da hora de retomar a conversa inteligente e civilizada, característica da boa política. Nélson Marconi e Samuel Pessoa, personagens dos mini-podcasts da semana, estão entre os vários interlocutores qualificados no debate que importa — e que, com sorte, deverá prevalecer no ciclo da próxima eleição presidencial: aquele sobre o país que queremos ter.
*JORNALISTA, ESCRITOR E PROFESSOR DA FAAP E DO INSPER