Diego Maradona: morre um imortal
Enric González
A morte de um ente querido provoca uma erupção de lembranças. Muitos milhões de pessoas recordam que esse homem impossível, Diego Armando Maradona, fez parte de suas vidas. E continuará fazendo. Estamos falando de alguém que personificou o mistério do futebol: por que um simples jogo de bola adquire tanto significado? Dieguito, o “cara suja” de Villa Fiorito, carcomido pela cocaína e pelo álcool, estava morrendo há tanto tempo que ninguém pensava que pudesse morrer. Mas ele o fez. Na quarta-feira, ao meio-dia, seu coração parou. O outro, Maradona, “o 10”, “D10S”, herói da Argentina e divindade profana, já havia assentado há anos um pé na história e outro na mitologia.
© gian mattia d’alberto (AP) Maradona celebra a estreia de seu documentário em Cannes, na França, em 2008.
É preciso dar um salto em direção à fé para entender o fenômeno. E levar em conta o peso da emoção e das vitórias simbólicas na vida coletiva. Do contrário, seria absurdo que, pela morte de um jogador de futebol, o presidente da República Argentina, Alberto Fernández, decretasse três dias de luto nacional. E que oferecesse a Casa Rosada para qualquer tipo de cerimônia. E que as pessoas, em Buenos Aires e em outros lugares, procurassem um lugar onde se reunir para chorar ―no funeral, são esperadas um milhão de pessoas. Acontecem coisas muito mais importantes. O mundo sofre o flagelo de uma pandemia. Mas morreu Diego Armando Maradona.
O último capítulo começou a ser escrito em 30 de outubro, dia em que completou 60 anos. Alguém, em sua conta no Instagram, postou uma mensagem do ídolo sobre as “mensagens maravilhosas” que a vida lhe dava. Ele mal conseguia falar ou raciocinar. Três dias depois, um hematoma foi removido de seu cérebro. Em 11 de novembro foi transferido da Clínica Olivos para uma mansão em Nordelta, uma região de canais e ilhotas ao norte de Buenos Aires. A casa, alugada, tinha equipamentos médicos e características que pareciam adequadas para que Maradona, ou melhor, o pobre Diego, não continuasse bebendo.
Quase nada estava funcionando corretamente em seu corpo. Já não lhe ocorria nenhuma daquelas frases antológicas. Na quarta-feira, 25 de novembro, tomou o café da manhã e cochilou, vigiado por um enfermeiro. Por volta das 11 da manhã, começou a ter asfixia e dores no peito. Nove ambulâncias foram socorrê-lo. Nenhum médico conseguiu evitar a parada cardiorrespiratória, que ocorreu por volta do meio-dia.
Incredulidade
“Não pode ser”, disse o presidente Fernández. A incredulidade foi a sensação dominante nos primeiros momentos. Em um país sem ídolos unânimes, Maradona era a exceção. Era um ídolo porque em 22 de junho de 1986, no Estádio Azteca, na Cidade do México, marcou o melhor gol de todas as Copas do Mundo; porque aquele gol eliminou a Inglaterra, apenas quatro anos depois da derrota argentina nas Malvinas; porque seu país estava saindo de uma ditadura e o gol assombroso convenceu os argentinos de que tudo era possível. “Você nos levou ao topo do mundo”, “obrigado por ter existido”, tuitou Alberto Fernández.
© CARLO HERMANN (AFP) Fãs do craque argentino se reúnem no local conhecido como Esquina de Maradona em Nápoles, na Itália, após a notícia da morte do ídolo.
Com isso, com o gol supremo, a revanche simbólica e a Copa do Mundo, teria bastado. No entanto, havia mais. “El Diego”, “El Pelusa”, era um menino da Villa Fiorito, um pibe surgido da pobreza e dos terrenos baldios, um “cara suja” que parecia concentrar a essência da Argentina popular. Falava com frases redondas que se espalhavam rapidamente e ficavam pregadas nas memórias. Teve sucesso como apresentador de televisão: sabia o que era o espetáculo, e que não havia espetáculo como ele. Seu peronismo e seu esquerdismo elementar, populista, refletiam um dos grandes filões que caracterizam a sociedade argentina. E jogava de acordo com o padrão onírico que os fãs atribuíam ao perfeito jogador “do povo”: gênio, astúcia, brilho, prazer. Sempre Davi contra Golias. Essas virtudes se ajustaram como uma luva no espírito napolitano, onde é pranteado tanto quanto em sua cidade de origem.
Acrescentemos a isso o longo espetáculo de sua autodestruição e de sua caótica vida familiar, quase paralelo ao de sua glória esportiva. Aqui interveio um elemento de cunho místico: seus vícios e doenças eram lamentados e ao mesmo tempo interpretados, meio às escondidas, como o calvário que corresponde a um ser messiânico. Esse complexo raciocínio coletivo poderia ser resumido em uma ideia: “Ele se sacrificou por nós”.
A transformação do jogador de futebol mítico em mito, sem mais, era óbvia nos últimos tempos. Maradona era técnico do Gimnasia y Esgrima de La Plata, o clube mais antigo da América Latina e o mais desprovido de títulos. Quando podia ir ao estádio o fazia arrastando as pernas e ofegando. Custava-lhe manter uma conversa. Como técnico, mal conseguia cumprir as funções mais básicas. Como estandarte, cumpria com sobras: não se sentava no banco, mas em um trono. Um sócio do Gimnasia y Esgrima o explicou assim: “Temos Maradona e com isso já estamos na história; o resto é menos importante”.
Nos próximos dias, as precauções contra o coronavírus não valerão. Haverá exatamente o contrário da distância física. Sua despedida, apesar da pandemia, será comparada inevitavelmente com as outras grandes emoções fúnebres do passado argentino: Gardel, Evita, Perón. Será uma procissão cheia de dor na Casa Rosada. Massiva e destroçada. Como a vida de Maradona.