Governo vai propor nova meta fiscal para as contas públicas como quer o TCU
Tribunal de Contas da União alertou a equipe econômica que uma meta flexível em 2021 iria contra a Lei de Responsabilidade Fiscal; se não enviar a nova meta, governo pode cometer crime de responsabilidade
Idiana Tomazelli e Adriana Fernandes, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – Após o alerta do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a ilegalidade de uma meta flexível para as contas públicas, a equipe econômica vai definir uma meta fixa de resultado primário para 2021, como exige a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
A pressão parte do TCU, que já avisou que o presidente Jair Bolsonaro poderá cometer crime de responsabilidade se não definir uma meta para o rombo nas contas públicas no ano que vem, antes do pagamento dos juros da dívida.
A meta de primário é o resultado das contas a ser perseguido pela equipe econômica e reflete a diferença entre receitas e despesas. Desde 2014, o Brasil tem déficit nas suas contas porque gasta mais do que arrecada.
TCU vê ilegalidade em proposta de meta flexível do governo Bolsonaro. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
Fontes da equipe econômica afirmam que há o desejo de rever a meta que está hoje na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para adequar ao alerta do TCU. A avaliação é que a regra fiscal adicional vai contribuir inclusive para blindar o governo de novas investidas por medidas que possam comprometer as contas em 2021.
O teto de gastos, por exemplo, não atinge desonerações tributárias. Em caso de meta flexível, o governo ficaria sem uma de suas linhas de defesa para barrar esse tipo de pressão. Por isso, a fixação de uma meta como manda a LRF ajudaria inclusive no ajuste fiscal.
No envio do projeto de Orçamento, em agosto, o governo projetou um rombo de R$ 233,6 bilhões nas contas em 2021, embora essa não seja formalmente uma meta a ser cumprida pelo governo. Fontes envolvidas nas conversas afirmam que esse valor não deverá ser a meta, já que o quadro de agosto para dezembro foi alterado. A previsão de receita deverá aumentar com a revisão para um tombo menor do PIB neste ano. Em 2021, também poderá haver aumento da receita prevista.
Restos a pagar
Um tema em aberto que será muito importante na definição do valor da meta é a restos a pagar (despesas transferidas de um ano para o outro), seja de crédito extraordinário (que ficam fora do teto de gastos), seja dos investimentos. A LDO precisa ser aprovada até o fim do ano para evitar um completo apagão nas despesas no início de 2021, pois o governo não teria base legal nem sequer para pagar salários e benefícios, com risco. É o que os economistas chamam de “shutdown”.
Neste ano, devido às incertezas provocadas pela pandemia e a dificuldade de se fazer projeções para o crescimento e o comportamento da arrecadação, o governo enviou em abril uma LDO com uma meta “flexível”: o gasto é dado pelo teto, que limita o avanço das despesas à inflação, mas não há compromisso com um resultado específico das receitas, que seriam resultado do ritmo da atividade econômica. Na prática, isso livra o governo de fazer bloqueios de despesa em caso de frustração na arrecadação.
Como antecipou o Estadão/Broadcast em 28 de outubro, o TCU alertou que a meta flexível descumpre as exigências da Constituição e da Lei de Responsabilidade Fiscal e avisou que o mesmo expediente não poderá ser usado no futuro.
Segundo apurou a reportagem, o entendimento de integrantes da Corte de contas é que a equipe econômica e o presidente Jair Bolsonaro cometerão um crime de responsabilidade caso não enviem uma nova proposta de meta fiscal, que esteja de acordo com a Constituição e a LRF. Para isso, a meta precisa ser fixa, ou seja, mostrar compromisso com um valor específico.
BRASÍLIA – O plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) emitiu nesta quarta-feira, 28, um alerta ao governo por considerar que a meta fiscal flexível proposta para as contas públicas em 2021 não condiz com as exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). A corte de contas também quer ouvir o Tesouro Nacional e o Ministério da Economia sobre os riscos e a possibilidade de elaborar um plano de bloqueio de recursos, caso a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2021, que fixa a meta e as bases legais para gastos, não seja aprovada ainda este ano.
Como antecipou o Estadão/Broadcast, a área técnica do TCU colocou em xeque a validade da meta fiscal flexível porque, na visão do tribunal, “subverte a regra de resultado fiscal e torna ineficaz os seus propósitos”. A posição foi acatada pelo relator, ministro Bruno Dantas, e ratificada pelo plenário da corte de contas.
Devido às incertezas provocadas pelos efeitos da pandemia de covid-19 sobre a arrecadação, o governo resolveu abandonar uma meta fixa de resultado primário no ano que vem (ou seja, um limite para o rombo nas contas públicas antes do pagamento das despesas com juros) e estabeleceu que seu objetivo central em 2021 será a diferença entre as receitas e as despesas, limitadas ao teto de gastos.
Na prática, o mecanismo que limita o avanço das despesas à inflação acabaria se tornando uma “superâncora”, deixando o governo livre do compromisso de fazer eventuais bloqueios de gastos em caso de frustração de receitas.
Em seu voto, Dantas afirma que não é possível uma “recorrência” de meta aberta para 2021, como já ocorreu este ano devido à calamidade imposta pela pandemia, e que a proposta do governo transformou o resultado primário em “um resultado matemático que surgir ao final do exercício”. “Embora a meta de resultado primário apresentada possa ser justificada pelo caráter excepcional das circunstâncias atuais, sua recorrência não poderá ser tolerada, por afetar o planejamento fiscal responsável, nos termos delineados pela Lei Complementar 101/2000 (LRF), e a credibilidade do governo perante os agentes econômicos”, afirmou.
O alerta emitido pelo plenário do tribunal serve de aviso ao governo. No acórdão, os ministros do TCU afirmam que, se aprovado o projeto, “sua manutenção nos termos propostos pode configurar infração aos referidos dispositivos”. Na avaliação de técnicos, caso o Congresso Nacional aprove a proposta de LDO da maneira como enviada pela equipe econômica, o tema pode virar alvo de uma disputa jurídica devido ao conflito de normas legais.
A mudança na sistemática da meta fiscal é central na estratégia de política fiscal do ministro da Economia, Paulo Guedes, para 2021, quando o orçamento de guerra já não estará mais em vigor. O orçamento de guerra retirou as amarras para que o governo pudesse gastar mais no combate à pandemia.
Para os técnicos do TCU, porém, a mudança na sistemática da meta pode fragilizar os esforços para assegurar a consolidação fiscal e a trajetória sustentável do endividamento público, que chega se aproxima de 100% do Produto Interno Bruto (PIB). Além disso, o argumento é que, mesmo que haja frustração de receitas – ameaçando o cumprimento da meta –, o governo sempre pode pedir novo aval do Congresso Nacional para alterar o objetivo da política fiscal.
Após o alerta emitido pelo TCU, o relator da Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) do ano que vem, senador Irajá (PSD-TO), vai se reunir com sua equipe de técnicos legislativos para “avaliar o cenário”. Na semana passada, Irajá disse ao Estadão/Broadcast que havia “grandes chances” de manter o dispositivo da maneira proposta pela equipe econômica, diante da falta de previsibilidade para a arrecadação em 2021. O resultado do julgamento, porém, deve acabar entrando na avaliação do relator, que até agora ainda não emitiu seu parecer porque sequer a Comissão Mista de Orçamento (CMO) foi instalada. O senador só deve dar uma posição sobre se manterá ou não a meta flexível após a conversa com os técnicos.
Como revelou o Estadão/Broadcast, a não aprovação da LDO, que é um passo prévio ao próprio Orçamento, poderia deixar o governo sem base legal para gastar em 2021, inclusive pagar despesas que são obrigatórias, como salários e benefícios previdenciários. É a LDO que estabelece a regra de execução provisória das despesas em caso de atraso no Orçamento.
Hoje, o plenário do TCU deu dez dias para que Tesouro Nacional e Ministério da Economia sejam ouvidos sobre os riscos e a possibilidade de elaboração de um plano de contingência para o caso de a LDO não ser aprovada ainda este ano, deixando um vácuo legal para a execução de despesas no ano que vem.
O diretor Executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, Felipe Salto, considerou acertada a decisão. “Meta flexível não é meta. A LRF é clara ao determinar a meta para o resultado primário. A receita importa para a dinâmica da dívida assim como a despesa”, disse.
Para Salto, o desdobramento dessa decisão é que será preciso fazer o inevitável: harmonizar as regras fiscais – meta de primário e teto de gastos – de modo a recuperar as condições de sustentabilidade da dívida pública. “De que adianta uma meta de primário se ela pode mudar ao sabor da arrecadação? Claro que a conjuntura é incerta, mas neste caso o correto seria ser o máximo conservador possível na projeção de arrecadação”, avaliou. Salto considera que o momento atual é de discussão do arcabouço fiscal sem perder de vista o essencial: controlar a dívida ao longo do tempo.
O coordenador do Observatório Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Manoel Pires, disse que não é não é razoável inserir uma incerteza a mais na atual situação fiscal do Brasil com a indefinição sobre o valor de uma meta fiscal das contas públicas. Segundo ele, a meta flexível proposta pelo governo precisa ser revista porque não atende à LRF, que determina uma meta fixa de resultado primário das contas públicas.
“Não ter uma meta e criar uma incerteza em torno disso levando inclusive uma desnecessária reprimenda do TCU”, disse o economista ao comentar decisão do TCU.
Segundo ele, o projeto de Orçamento de 2021 prevê uma estimativa de déficit primário de R$ 233,6 bilhões. “Essa poderia ser a meta. A forma de estimar existe. E, se tiver que mudar lá na frente, que se faça como sempre foi feito”, recomendou. “Bastaria encaminhar um ofício para o Congresso com essa previsão para incorporar no projeto de Orçamento”,
Pires ressaltou que o argumento do governo ao propor na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2021, em abril passado, era o de que havia muita incerteza. “É um argumento correto, está ok, mas hoje existe um valor para se trabalhar”, ponderou numa referência ao projeto de Orçamento, que foi enviado em agosto.