O Shmoo de Natal
Em contraste com o personagem do cartunista Al Capp, no Brasil falta o mínimo de oportunidades
A oportunidade é revolucionária.
O conto O Peru de Natal, de Mário de Andrade, retrata o primeiro Natal de uma família após a morte do pai – um homem correto, mas absolutamente sem graça, “o puro-sangue dos desmancha-prazeres”. Naquele Natal, o filho de 19 anos (e narrador) tem a ideia de servirem peru na ceia de Natal, que contaria com apenas cinco pessoas da família: a mãe, a tia que mora com eles, a filha e os dois filhos. Até então, peru naquela casa só em festa com toda a parentada, que “devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir”. Para a família só sobravam os restos; e o resto dos restos para a mãe.
Naquele Natal ia ser diferente. O filho serve primeiro a mãe, com a parte mais suculenta do peru, e depois serve boas porções para a tia. As duas começam a chorar, o que traz a lembrança do pai para a mesa, ameaçando estragar a felicidade criada pelo peru. Começa, então, uma disputa silenciosa entre a memória do pai castrador e a sensualidade saborosa do peru. Ao lembrar que o pai iria gostar de vê-los todos juntos, o filho começa a virar o jogo: o pai se torna apenas uma boa memória e o peru sai – total e inequivocamente – vitorioso.
Aquele momento é o início de “um amor novo, reacomodado, mais completo”, de uma felicidade familiar intensa. “Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus.”
A oportunidade é revolucionária.
O Shmoo (que rima com peru) é uma criação genial do cartunista Al Capp, que surgiu em 1948 nas tirinhas Li’l Abner (publicadas no Brasil como “Família Buscapé”). Os Shmoos são animais ultrassimpáticos, de formato arredondado, que vivem num vale isolado, até que Li’l Abner (Ferdinando Buscapé) os encontra e leva para a civilização.
Os Shmoos proveem as pessoas de tudo o que necessitam. Eles põem ovos e dão leite (e até manteiga e queijo). Sua carne, quando grelhada, tem o gosto dos melhores bifes; quando cozida, tem gosto do frango mais saboroso. Sua pele serve para fazer de tudo: de roupas a acessórios de couro e mesmo – quando seca – construções mais seguras e confortáveis que as de madeira e alvenaria.
Os Shmoos não precisam ser alimentados e se multiplicam numa velocidade extraordinária, o que significa que cada família no mundo pode ter a sua criação de Shmoos. O melhor é que nem é preciso matá-los. Quando você olha com fome para um Shmoo, ele morre de pura felicidade.
Obviamente, os Shmoos começam a afetar a vida das pessoas, que não precisam mais trabalhar, e a desorganizar radicalmente a economia. As empresas que vivem de fabricar e vender alimentos e bens básicos começam a quebrar. Mesmo a indústria do entretenimento é afetada, pois os Shmoos são ótimos companheiros para brincar – muito melhores que os programas de televisão.
Os Shmoos são revolucionários: provavelmente uma das criações mais revolucionárias da literatura (sim, quadrinho é literatura). Tão revolucionários que se tornam uma ameaça para o modo de vida capitalista e precisam ser eliminados – não por serem perigosos, mas por serem bons demais e criarem oportunidades em excesso para a humanidade.
Enquanto isso, no Brasil, falta o mínimo de oportunidades. Oportunidades para aqueles que têm o azar de nascer em famílias pobres e cuja chance de ascensão social é mínima. Oportunidades para aquelas pessoas ou setores que não têm a chance de se beneficiar de um tratamento tributário diferenciado.
Enquanto isso, no Brasil, não conseguimos decidir se a ampliação de programas sociais que dão um mínimo de dignidade para toda a população é mais importante que a manutenção dos privilégios de alguns; não conseguimos decidir se um sistema tributário que estabelece regras homogêneas – e progressivas – para todos é melhor que um sistema cheio de benefícios e distorções que favorecem uns poucos.
Um feliz Natal e um ano de 2021 que, se não puder ser farto em Shmoos, pelo menos seja cheio de oportunidades para todos.
* DIRETOR DO CENTRO DE CIDADANIA FISCAL
Levantamento com dados da Receita Federal mostra que, em 2016, famílias com renda mensal acima de 20 salários mínimos abocanhavam 38% da renda nacional Foto: CLAYTON DE SOUZA/ESTADÃO