Reação de quem não quer abrir mão de privilégios é obstáculo à reforma tributária, diz economista
O presidente do Insper, Marcos Lisboa, afirma que, para reforma avançar no Congresso, será necessária a construção de um consenso na sociedade e a liderança do governo
Entrevista com
Marcos Lisboa, economista
Adriana Fernandes, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – Presidente do Insper, o economista Marcos Lisboa é um observador atento do desenrolar da reforma tributária no Congresso. Ele considera que o caminho para uma boa reforma é garantir que os “iguais” paguem a mesma carga de impostos. Lisboa alerta, porém, que, na hora em que se tenta tratar todo mundo como igual, os grupos organizados se mobilizam e dizem: “comigo não, começa pelos outros”. Essa é a resistência, segundo ele, que vem sendo enfrentada pela proposta que não avançou no ano passado.
“Vamos aceitar os grupos terem pequenas perdas organizadas em troca de um ambiente de negócios mais saudável, mais competição, justiça tributária e maior abertura ao comércio, com maior acesso às tecnologias? Ou vamos continuar nessa situação ruim em que ninguém quer abrir mão?”, questiona.
Nesta entrevista, Lisboa analisa também as resistências à agenda de corte de renúncias tributárias (a maior parte constituída de privilégios a grupos e setores específicos), que volta e meia retorna ao debate como tábua de salvação para as contas públicas, mas nunca avança. Neste ano, a previsão é que o governo deve abrir mão de R$ 307,9 bilhões com isenções tributárias e benefícios financeiros e de crédito, o equivalente a 4% do Produto Interno Bruto (PIB).
Por que é tão difícil avançar na agenda de corte de renúncias?
É um desafio porque em geral cada um desses gastos está regulamentado por uma lei específica ou até mesmo pela Constituição. Não é possível fazer uma abordagem geral, uma lei geral, para reduzi-los. Tem que enfrentar caso a caso. Mas cada vez que se vai entrar num caso particular, os grupos beneficiados se opõem. Vai discutir Zona Franca de Manaus, Simples (regime que simplifica o pagamento de impostos e oferece tratamento diferenciado para micro e empresas de pequeno porte), isenções, recebe a reação dos diversos grupos que são beneficiados.
O economista e presidente do Insper, Marcos Lisboa. Foto: Felipe Rau/Estadão – 25/4/2018
A reforma tributária ajuda a desatar esse nó?
A proposta que está na Câmara enfrenta o problema da tributação sobre consumo. Cria uma regra comum. Qualquer decisão de consumo, independentemente se é um serviço ou a compra de um bem durável, passará a pagar a mesma carga tributária. Tributa-se igualmente e tem um processo muito mais simples de calcular, que é essencialmente pegar as notas fiscais do que se vendeu e descontar das notas do que comprou, e pagar uma alíquota única sobre a diferença.
Os críticos apontam que vai gerar um aumento da carga e que não seria o momento porque o Brasil está saindo de uma recessão.
Se a alíquota for bem calibrada, não é verdade que vai aumentar. Vai ser cobrada a mesma alíquota de todas as decisões de consumo, deixando-se de privilegiar algumas decisões em detrimento das demais. Aumentará em alguns casos e cairá em outros. Por exemplo, alguns serviços são muito onerados, como energia elétrica, que tem uma carga tributária muito elevada. Telecomunicações é a mesma coisa. Isso seria desonerado. Significa menos preços desses insumos para as empresas, as famílias. Outras decisões de consumo atualmente são menos oneradas e vão passar a pagar um pouco mais.
O corte de renúncias, não relacionados diretamente à reforma tributária, deveria ser aprovado antes dela ou pode vir junto?
O sistema do Brasil é tão caótico que é difícil corrigir todas as distorções de uma vez só. Há muitas distorções e muitas injustiças. Famílias em situações muito parecidas de renda, número de filhos, pagam alíquotas muito diferentes de imposto sobre a renda. Se é um empregado formal, a alíquota é bastante alta. Por outro lado, se você se organiza como uma pequena pessoa jurídica, paga muito menos. O caminho para uma boa reforma tributária é garantir que os iguais sejam igualmente tributados.
Por que o brasileiro reclama que paga muito imposto, mas não briga para acabar com essas distorções e desigualdades?
No Brasil, se paga muito imposto para um país emergente. Isso decorre de termos gastos obrigatórios do setor público muito altos. A segunda parte da história é que esse imposto é desigualmente distribuído sobre as decisões de consumo e sobre as famílias. Aí, os grupos reagem. Quem paga menos imposto não quer ser tratado como os demais. Vimos na discussão da reforma tributária diversos setores que ficaram preocupados de ter um pequeno aumento da carga tributária porque pagam menos. A reação foi de que querem pagar menos do que os demais: ‘não quero pagar imposto como o resto da sociedade’. Essa é a resistência à reforma.
O governo terá de aumentar a arrecadação via impostos para pagar os gastos da covid-19 em 2021?
O ideal seria uma reforma tributária que equalizasse a tributação para as famílias com a mesma renda. Isso daria um alívio para o País e tiraria todo esse contencioso tributário gigantesco que temos hoje, que paralisa os negócios e penaliza a produção. Isso permitiria ganho de produtividade. Sabemos hoje que uma parte importante da diferença de produtividade e de renda entre país pobre e rico é a proteção setorial. O país fica fazendo o que não faz bem ou fazendo de uma forma ineficiente.
Governo e Congresso estão convencidos dessa agenda?
A sociedade não está convencida dessa agenda. Vemos diversos grupos organizados da sociedade e do setor privado contra uma agenda de modernização e maior justiça tributária e redução dos subsídios. O que acaba acontecendo no Congresso é o reflexo de uma falta de consenso da sociedade. Mas tem também uma falta de liderança do Executivo nessa agenda. O próprio governo dá sinais contraditórios do rumo que quer retomar. Ainda agora, assistimos à concessão de novas distorções, como foi o caso da importação de armas (o governo zerou o imposto de importação de revólveres e pistolas).
O Congresso minimiza a importância da reforma tributária?
A reforma teve bastante apoio em meados do ano passado. O que houve foi que o governo sinalizava em outra direção, ainda que de forma confusa, como no caso da CPMF repaginada. Se o Executivo tem essa ambiguidade sobre qual caminho defende, é muito difícil avançar com uma agenda importante como essa no Congresso.
O ano de 2020 provou que não dá para avançar na agenda de reforma tributária sem o governo?
É extremamente difícil. Estamos num regime presidencialista, o Executivo é quem tem as informações consolidadas da política pública. É quem tem a liderança do processo. Mas o próprio governo não sabe bem o que quer. As declarações são muito inconsistentes. Uma hora apoia uma medida e outra hora apoia outra.
A tributária é aquele tipo de reforma que todo mundo quer, mas sem que saia perdendo?
O debate por vezes subestima o custo do nosso atual sistema tributário. As empresas tomam decisões ineficientes de produção, de escolha de tecnologia e do que produzir, em razão da tributação desigual. Isso resulta em menor produtividade e menor crescimento econômico. Além disso, há a injustiça do regime atual, em que pessoas ou empresas em situações parecidas pagam tributos diferentes simplesmente em razão de como estão legalmente organizadas. Tem decisões de consumo que são mais oneradas do que outras. A reforma tributária tem o mérito de equalizar a cobrança de tributos. Mas na hora que vai tratar todo mundo como igual, os grupos organizados se mobilizam e dizem: ‘comigo não, começa pelo outros’. Isso trava o processo.
A reforma tributária tem interesses muito mais pulverizados e é mais complexa que a da Previdência. Como captar apoio para ela?
Estamos crescendo pouco e há muito tempo. Perdemos essa década. Os brasileiros empobreceram nessa década. Parte do problema vem dessa série de distorções setoriais e distribuição de benefícios. Para o País voltar a crescer como os demais, tem que começar a superar essas restrições. É uma escolha do País. Vamos aceitar os grupos terem pequenas perdas organizadas em troca de um ambiente de negócios mais saudável, com mais competição, justiça tributária e maior abertura ao comércio, com maior acesso às tecnologias? Ou vamos continuar com essa economia estagnada por que ninguém quer abrir mão do seu pequeno privilégio?
Quando começou a se discutir corte das deduções do Imposto de Renda da Pessoa Física, a proposta não foi adiante. Por que?
É bom deixar claro. Isso é parte do Brasil. Se concede benefícios para quem está na elite do País. Se a pessoa ganha mais de R$ 30 mil por mês, está no 1% mais rico do País. Boa parte desses benefícios de saúde, educação e outros vai para os mais ricos. Não vai para a grande parte da população. O que é preocupante no Brasil é que alguns temas, que são relativamente pequenos do ponto de vista do valor envolvido, servem como cortinas de fumaça para travar discussões muito mais profundas e mais complexas.
Quer dizer que o que debate sobre o corte de isenções acaba travando a mudança na tributação sobre o consumo?
Algumas coisas simbólicas travam a discussão.
Por exemplo?
Discutir ao mesmo tempo a tributação sobre consumo e sobre a renda, que são duas reformas imensas e complexas. Para piorar, em geral deixa-se de fora a tributação sobre lucro presumido ou o Simples, que geram imensas distorções, em que famílias iguais pagam impostos de forma diferente. É claro que se deve discutir os impostos sobre a renda e distribuição de resultados (das empresas). Mas a discussão acaba embaralhando muitos temas e deixando oportunisticamente alguns problemas de fora. Outro exemplo é a proposta de uniformizar a tributação sobre consumo, seja ele livros, cinema, saúde, educação, alimentação. É impressionante a quantidade de distorções, as listas são de páginas e páginas de produtos, discriminando bulbo de cebola, cavalos puro-sangue, desde que não seja do tipo Inglês, e por vai. Mas aí alguns setores se organizam, como as editoras e livrarias, e toda a discussão sobre o resto é paralisada.
E o caso da desoneração da cesta básica?
É ótimo exemplo. Ao invés de desonerar os produtos da cesta básica, que são consumidos por ricos e pobres, o mesmo valor que o governo deixa de arrecadar se fosse transferido para o Bolsa Família, a queda na desigualdade de renda seria 12 vezes maior. O impacto seria muito maior fazendo uma política via o gasto do que via tributação sobre o consumo. A política pública em geral é muito mais eficaz via gasto do que tributação. A tributação progressiva deve ser sobre a renda.
Essas discussões travaram o avanço na reforma tributária e que se associou ao debate que cresceu na pandemia da tributação do andar de cima?
Todo mundo acha que os mais ricos são sempre os outros. Esse é o problema do Brasil. O discurso de tributar os mais ricos é fácil. Agora, na prática, vamos equalizar a tributação do lucro presumido ao do trabalhador formal? Como pode pessoas com renda de R$ 50 mil, R$ 10 mil por mês, de uma empresa de lucro presumido, pagar uma alíquota de imposto menor do que os trabalhadores formalizados, com renda muito menor?
Mas a discussão de uma tributação maior para os mais ricos não é importante?
Podemos ter no Brasil uma alíquota marginal maior sobre a renda da pessoa física. É uma discussão legítima. Em vez de ir até 27,5%, ir a 34%. Mas há distorções imensas que não põem ser esquecidas. Por exemplo: as empresas que declaram pelo lucro real têm uma alíquota efetiva entre 25%, 27%. As do lucro presumido e do Simples pagam muito menos, independentemente da renda de quem recebe. A pessoa pode ser um acionista pequeno de uma grande empresa ou sócio grande de uma empresa do lucro presumido. Assim, pessoas muito ricas pagam uma alíquota bem menor do que a classe média. Em vez de enfrentar o problema de fundo, garantir que quem recebe na ponta o dinheiro, deveria ser o foco da análise. Mas trava a discussão quando ela entra no Simples, no lucro presumido, que é onde estão as nossas maiores distorções na tributação sobre a renda.
Mais importante agora na reforma tributária é mudar a tributação sobre o consumo?
O adequado deveria ser convergir para uma situação de igualdade tributária sobre o consumo e progressividade (penalizar menos os mais pobres) de imposto sobre a renda das famílias. Se esse é o ponto de chegada, estaremos resolvendo vários ruídos dessa discussão. Entender que hoje tem acionista que paga muito imposto e outros que pagam pouco, e isso muitas vezes nada tem a ver com o lucro que o acionista recebe. Tem trabalhadores que são muito onerados, enquanto prestadores de serviço que exercem atividades equivalentes, com renda equivalente, pagam bem menos. Entender que as distorções da tributação sobre o consumo têm impacto perverso sobre o crescimento.
O debate está sem foco?
O debate no Brasil por vezes se perde em temas corretos, mas muito pequenos frente à extensão do desafio. Não se discute o problema fundamental que é o crescimento do gasto com a máquina pública que pouco chega à população. Vamos lembrar que o Brasil aumentou sua carga tributária em nove pontos porcentuais do PIB em 25 anos. É um aumento expressivo e, quando se compara os países parecidos com o Brasil e os indicadores sociais, não melhorou mais que maioria. Melhorou menos. Tivemos mais arrecadação, endividamento público e isso virou menos benefício social do que o esperado, quando comparamos com os demais países emergentes. A nossa tecnologia de tirar dinheiro da sociedade e fazer política pública que beneficia o cidadão tem problema de desenho, de gestão, e não chega onde deveria chegar.
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