A realidade depois da festa

Chegada simbólica da vacina é uma esperança num país onde se morre afogado no seco

Fernando Gabeira, O Estado de S.Paulo

Às vezes é preciso tomar uma certa distância para entender o que se passa no Brasil. Não por esnobismo, mas pelo esforço se aproximar da realidade.

Não creio que se tenha festejado tanto a chegada da vacina em outros países do mundo. Certamente, nenhuma outra agência reguladora transmitiu sua análise das vacinas ao vivo. E em nenhum país o presidente da República se sentiu derrotado e, num ato falho, no dia seguinte disse: “Apesar da vacina”…

Tudo indica que foi vencida uma etapa do negacionismo. Mas em que contexto? Os casos de coronavírus continuam crescendo no País. Mais cidades podem ter dificuldade de suprir hospitais com oxigênio. Algumas nem têm hospitais, só pacientes com falta de ar.

A celebração da chegada das vacinas precisa ser confrontada com a necessidade mais ampla do País. Foram apenas 6 milhões de doses. Talvez possam ser ampliadas para pouco mais de 10 milhões, acrescidas das que serão envasadas pelo Butantan. Mas um programa de vacinação com o nível de eficácia das vacinas que temos terá de alcançar, no mínimo, 150 milhões de pessoas, o que significaria 300 milhões de doses. Como as conseguiremos, em que prazos?

Parece-me que no início o Estado de São Paulo negociou vacinas para a sua população. A ideia de alcançar o País inteiro surgiu depois, com a própria luta política e a falta de alternativas do governo negacionista.

Dependemos hoje da China e da Índia para os insumos necessários chegarem ao País e serem manejados por Butantan e Fiocruz. Um processo de vacinação de grande amplitude depende de planejamento, disciplina e continuidade, não se esgota nas fotos.

China e Índia têm, juntas, quase 3 bilhões de habitantes. Ambas iniciaram o processo de vacinação interno. A Índia quer começar com 300 milhões de vacinados, logo, vai precisar de 600 milhões de doses. Como esperar um fluxo permanente e seguro desses dois países?

O Brasil acha que comprou da Índia 2 milhões de doses da Oxford-AstraZeneca. Mas o nível de informação sobre o País é baixo, assim como precária é a atual habilidade diplomática brasileira. Adesivar um avião para buscar as vacinas é algo tão fora do ar que possivelmente ele seria apreendido no aeroporto de Mumbai.

Há pressão para que a demanda interna indiana seja atendida prioritariamente. Além disso, as exportações obedecem também a critérios geopolíticos. O discurso de China e Índia é o de contribuir para a humanidade. Mas disputam espaço na Ásia e certamente farão da vacina um instrumento desse jogo diplomático.

No caso da China, onde se produzem insumos para a Coronavac e AstraZeneca, além de suas prioridades geopolíticas, há ainda a hostilidade do governo Bolsonaro, manifestada às vezes de forma preconceituosa. Assim como o ministro Ernesto Araújo é a última pessoa que deveríamos escolher para negociar com Biden, também o é para negociar com a China.

De modo geral, não estaríamos tão despreparados para uma conversa com a China se a questão ideológica não tivesse prevalecido também no campo da telefonia 5G. Ao optar pela chamada rede limpa, influenciado por Trump, o governo brasileiro não só ameaça excluir os chineses, como adotar uma saída tecnológica mais cara para o consumidor brasileiro.

Nada disso era para ser tão grave se desde o meio do ano passado o governo tivesse compreendido o papel estratégico das vacinas. Preconceitos anticientíficos pesaram nas relações com a Pfizer, que, ao lado da Moderna, trabalha com uma técnica geneticamente avançada. Foi pensando nesse tipo de vacina que Bolsonaro lançou a célebre dúvida sobre seus efeitos, virar ou não jacaré.

Segundo as notas da própria Pfizer, poderíamos ter comprado, no mínimo, 30 milhões de doses, que já resolveriam 10% de nossas necessidades. E havia, evidentemente, a possibilidade de comprar mais. A questão tão problemática de conservar a vacina a menos 70 graus Celsius foi parcialmente resolvida pela própria Pfizer com a embalagem de gelo seco.

Não negociamos com a Moderna talvez pelo preço de suas doses. Mas nestas circunstâncias o preço tem de ser visto com realismo, considerando nível de eficácia, necessidade de mover a economia, alívio no sistema de saúde.

Essas duas vacinas têm uma desvantagem em relação às que foram contratadas pelo Brasil: não transferem tecnologia para serem produzidas aqui. Isso não derruba o fato de que eram necessários mais contratos, um leque maior de alternativas para enfrentar a situação, algo impossível para o universo mental de Bolsonaro. Seus preconceitos são muito mais variados que as alternativas: a vacina com RNA mensageiro transfigura a pessoa em jacaré, a vacina mais tradicional é chinesa e foi comprada por Doria.

A segunda onda da pandemia bate forte no Brasil. Com ela, variantes do coronavírus com mais capacidade de propagação. Infelizmente, o vírus se adapta mais rápido à realidade que o cérebro dos dirigentes.

A chegada simbólica da vacina é sempre uma esperança. Com ressalvas, ela chega a um país sufocado pela pandemia e pelo negacionismo. Falta oxigênio, morre-se afogado no seco.

JORNALISTA

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