Uma doença crônica em nossa sociedade

Rogério Tadeu Romano*

Rogério Tadeu Romano. FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Como muitos esperavam lastimáveis cenas de desrespeito a princípios estão acontecendo no Brasil, tudo com o objetivo de obter a vacinação contra a covid-19.

O manancial sanitário de vacinação oferecido à população não é suficiente para atendimento imediato.

O Plano Nacional de Imunização, elaborado pelo Ministério da Saúde, definiu como grupos prioritários os idosos e deficientes residentes em institutos de longa permanência, profissionais de saúde e indígenas aldeados.

No plano, o ministério recomenda uma “ordem de priorização” entre os profissionais de saúde, com as equipes de vacinação, trabalhadores de asilos e funcionários de serviços de saúde público e privados que atuam na linha de frente do combate à covid-19 em primeiro lugar. Estados e municípios podem, dentro dessas categorias, “adequar a priorização conforme a realidade local”.

Diversos prefeitos, particulares com acesso às benesses do poder, tiveram acesso a vacina, “furando a fila da vacinação”.

Em Jupi, cidade do interior de Pernambuco, foi a secretária de Saúde Maria Nadir Ferro e um fotógrafo que trabalha na prefeitura, conhecido como Guilherme JG, que tomaram a vacina, mesmo sem fazer parte do grupo prioritário.

No Rio Grande do Norte, em Natal, o Ministério Público estadual apura denúncias de que funcionários da prefeitura, fora do grupo prioritário para a vacinação, foram imunizados. De acordo com os relatos, apresentados ao MP pelo Sindicato dos Servidores Públicos do Município de Natal, funcionários que detêm cargos comissionados na Secretaria Municipal de Assistência Social receberam a Coronavac em um dos locais de vacinação da cidade. Entre eles está o chefe do setor de informática da secretaria, que compartilhou nas redes sociais o registro do momento em que foi imunizado.

A prioridade para receber a primeira dose da Coronavac, vacina contra a COVID-19, não foi respeitada.

Tudo isso é fruto de uma doença crônica enraizada na sociedade brasileira.

O sistema colonial e o esquema de capitanias hereditárias, o regime escravocrata que perdurou por mais tempo aqui do que em outros países, o coronelismo e o nepotismo político que confunde as esferas do público e do privado deram condições para a carteirada reinar.

Esse o histórico da sociedade brasileira.

Sempre houve uma percepção de que existe em nossa sociedade um enorme índice de desrespeito aos direitos, que é um problema cultural, mas também impulsionado pela sensação de impunidade, provocada, em certa medida, pelas próprias autoridades que não se preocupam devidamente com o problema da impunidade, e que tinham o dever profissional de atacar, porque possuem autotutela. Mais grave ainda é constatar que esta situação gera agressões reiteradas aos direitos de diversos cidadãos que, por não possuírem algum tipo de “status” social – são meros cidadãos, sem nenhuma qualificação adicional – , simplesmente não têm como fazer valer seus direitos por meio de uma “carteirada”, tendo, portanto, que se submeter as dificuldades naturais que se apresentam para tanto.

Para o antropólogo Roberto DaMatta, o principal acadêmico a esmiuçar o espírito do “você sabe com quem está falando?”, o hábito está relacionado a uma questão de papéis sociais e seus limites. Afinal, na prática, as regras valem igualmente para todos?

“Tem tudo a ver com uma sociedade que jamais discutiu privilégio e limite de privilégio. Privilégio é exatamente a liberdade de poder fazer tudo”, disse o autor de “Jeitinho brasileiro” e “Carnavais, malandros e heróis”.

DaMatta escreve ensaios sobre nossas autoridades e celebridades que promovem “um espetáculo deprimente de racismo, machismo, ignorância, arrogância e injustiça por se considerarem superiores aos demais e, portanto, dispensados de obedecer às leis e às normas da boa convivência social”. O livro, ampliado e reeditado, continua contemporâneo, prova de nossa falência como sociedade.

Tem o Brasil ainda um cordão umbilical com a prática do coronelismo e com uma estrutura feudal.

Tudo isso é sintoma de uma cultura que tem aversão ao igualitarismo.

Afronta-se ao princípio republicano; afrontam-se ainda os princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e da lealdade às instituições, podendo ser punido o agente não só criminalmente, mas também com a obrigação de ressarcir todo o valor correspondente às vacinas desviadas, podendo, outrossim, perder a função pública se for servidor ou agente público e ser condenado a pagar multa no valor de até 100 vezes o valor do salário que recebe.

A Constituição vinculou ainda a atuação dos servidores do Estado à observância dos cânones da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (artigo 37), significando que devem exercer suas funções, de forma lícita, imparcial, produtiva e transparente, visando exclusivamente ao interesse público e não à satisfação de desígnios particulares. Em defesa desses postulados estabeleceu que a prática de atos de improbidade administrativa importa a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, nos termos da lei (artigo 15, V; e 37, § 4º).

O princípio republicano é fundamental da ordem constitucional.

Trata-se de princípio constitucional sensível.

É um princípio claro e indubitavelmente mostrado pela Constituição, os apontados, enumerados.

Ele se encerra dentre outros, na enumeração trazida pelo artigo 34, VII, da Constituição.

Roque Antônio Carrazza (Curso de Direito Constitucional Tributário. 24ª Ed. Sâo Paulo-SP, Editora Malheiros. p. 81 e seguintes) assim define o princípio republicano:

“República é o tipo de governo, fundado na igualdade formal das pessoas, em que detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo, representativo (de regra), transitório e com responsabilidade.”

Mais do que um ato que se revela deontologicamente como censurável, trata-se de um crime o “furar a fila nessas circunstâncias”.

Enquadra-se a conduta no crime de peculato, abordado no artigo 312 do Código Penal.

O desvio de vacinas, por qualquer agente público, para finalidades não previstas pelas autoridades sanitárias pode configurar crime de peculato (apropriação, por funcionário público, de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio).

O agente público e o beneficiário, particular, da vacina tomada em condições irregulares, praticam em coautoria o crime de peculato.

Comete o crime de peculato, previsto no artigo 312 do Código Penal, o agente público que se apropria de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou os desvia, em proveito próprio ou alheio.

Pressuposto do crime é o fato de que o agente tenha a posse legítima de coisa móvel(dinheiro, valor ou qualquer outro bem).

Não é a posse civil bastando a detenção. Se o sujeito ativo não tiver a posse estamos diante de peculato-furto, previsto no artigo 312, § 1º, do Código Penal. A posse da coisa, poder de disposição, deve resultar do cargo, sendo indispensável uma relação de causa e efeito entre o cargo e a posse.

A conduta deve recair sobre os objetos móveis enumerados pela lei penal. Se não for assim estar-se-ia perante uma conduta atípica.

São condutas típicas para efeito do crime de peculato: apropriação ou desvio, podendo o tipo configurar-se mediante o dolo específico, principalmente com relação ao peculato-desvio.

Apropriar-se significa assenhorear-se da coisa móvel, passando dela a dispor como se fosse sua. Desviar é dar à coisa destinação diversa daquela em razão de que foi-lhe entregue ou confiada ao agente.

Caberá ao Parquet tomar nas unidades estaduais, nos limites de suas atribuições tomar as medidas cabíveis, desde a recomendação, até a abertura de inquérito policial e adoção de outras medidas cabíveis, como o exercício da ação penal pública incondicionada.

Ainda cabem ações de improbidade administrativa com base na Lei nº 8.429/92.

*Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado

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