Um local predileto de morcegos, turistas e agora de rastreadores da covid
Um complexo de cavernas em um templo na Tailândia há muito tempo atrai turistas, peregrinos e colecionadores de guano. Agora, os cientistas chegaram procurando qualquer ligação potencial com o coronavírus
Hannah Beech e Adam Dean, The New York Times – Life/Style
TAILÂNDIA – As cavernas fedem a morcegos. Na escuridão das grutas, numa caverna a oeste de Bangkok, tailandeses com faróis e lanternas fazem seu trabalho.
Peregrinos chegam ao templo, que é proprietário do complexo, e oram diante das estátuas de Buda, cuja expressão não indica nenhuma reação às fezes dos morcegos que caem em seus ombros.
O complexo de cavernas em um templo na Tailândia atrai turistas, peregrinos e colecionadores de guano. Foto: Adam Dean / The New York Times
Os que chegam em busca das fezes dos morcegos as recolhem para vender como fertilizantes, carregando consigo sacos do estrume através de um caminho repleto de estalactites e estalagmites.
E os pesquisadores médicos, supervisionados por um dos mais destacados virologistas especializados em morcegos, aprisionam os animais em busca de vestígios do coronavírus responsável pela covid-19. Os cientistas acreditam que ele teve origem nos morcegos.
Fora do complexo, o abade do templo budista que se intitula o “templo de centenas de milhões de morcegos”, usa um megafone para dizer aos visitantes que esses mamíferos voadores do local são inofensivos.
“Não se preocupem. Esses morcegos não transportam doenças porque comem insetos, diz Phra Kru Witsuthananthakhun. “Todos sabem que quando os morcegos comem frutas eles as dividem com outros animais, como ratos, e é assim que a doença se propaga”.
Ele está certo ao afirmar que os morcegos que se alimentam de frutas têm ligação com os vírus graves que atingem a população humana. Mas aqueles que comem insetos também já transmitiram doenças graves. Muitos virologistas acham que o morcego-ferradura, ávido comedor de insetos, pode estar ligado ao coronavírus. E um estudo de um parque nacional tailandês identificou morcegos desta espécie nas cavernas.
A área em torno das grutas, no bairro de Photharam, na província de Ratchaburi, enriqueceu graças aos morcegos – atraindo turistas, empresas de fertilizantes e, mais importante, os quiropterologistas, cientistas que estudam os morcegos.
No centro da pequena e palpitante economia local está o Templo de Khao Chong Phran, proprietário das cavernas de pedra calcária onde os morcegos se refugiam durante o dia. Só numa dessas grutas existem três milhões de morcegos de 10 espécies diferentes.
Hordas de morcegos saem da caverna Khao Chong Phran ao anoitecer, perto do distrito de Photharam na província de Ratchaburi. Foto: Adam Dean / The New York Times
Quase um quarto das espécies mamárias são morcegos e sua capacidade de voar carregando uma placa de Petri de vírus os tornam maravilhas zoológicas e vetores de doenças. Doenças infecciosas nas últimas décadas que se acredita tiveram origem nos morcegos, incluem os coronavírus que causaram a síndrome respiratória aguda grave (SARS) e a MERS – síndrome respiratória do Orinte Médio, junto com outros vírus como o Nipah, Hendra e Ebola.
Muitos desses vírus foram transferidos dos morcegos para um hospedeiro intermediário, como o macaco, a civeta asiática ou o camelo, para depois chegarem aos humanos.
Embora o coronavírus responsável pela covid-19 e que despertou a atenção pública no final de 2019 não esteja conclusivamente ligado aos morcegos, na província de Yunnan, a sudoeste da China, um pesquisador encontrou em morcegos-ferradura evidências de um vírus que se assemelha muito a ele. As fezes desse morcego do Camboja também mostraram existir alguma ligação. E a mesma família de morcegos foi o reservatório natural do coronavírus da SARS.
A descoberta de uma possível conexão entre os morcegos-ferradura e o coronavírus responsável pela covid-19 levou o Dr. Supaporn Watcharaprueksadee, vice-diretor do Centro de Doenças Infecciosas Emergentes da Tailândia, e especialista em vírus transportados por morcegos, a investigar se essas espécies da Tailândia, que não está distante de Yunnan e do Camboja, podem ter uma similar carga viral.
Segundo o especialista, sua equipe não encontrou nenhum traço de algum coronavírus similar ao que causa a covid-19 nos morcegos do templo de Khao Chong Phran, embora tenham sido descobertos outros coronavírus ali.
Testes feitos em humanos que moram na região e em torno do tempo, incluindo os que recolhem o estrume dos animais e já passaram décadas em proximidade com os morcegos não registraram nenhuma evidência de anticorpos do vírus.
Embora a Tailândia tenha sido o primeiro país fora da China a confirmar um caso de covid-19 – num turista chinês que visitou a região no início de janeiro do ano passado, o país desde maio parecia ter sufocado a transmissão local. No geral os tailandeses têm se mostrado vigilantes, usando máscaras, e as fronteiras tailandesas foram fechadas para impedir que o vírus chegasse de fora.
Mas, nas últimas semanas, o vírus começou a se propagar pelo país depois de ser primeiramente identificado em comunidades de imigrantes que trabalham ao longo da porosa fronteira com Mianmar. Em questão de meses, de nenhum caso registrado de transmissão local, a Tailândia contabilizou centenas de infecções por dia no final de dezembro e em janeiro.
Uma equipe de ecologistas e estudantes de ecologia da Universidade de Kasetsart coleta amostras de um morcego em um laboratório perto da caverna Khao Chong Phran. Foto: Adam Dean / The New York Times
Na visão dos que recolhem as fezes dos morcegos em Khao Chong Phran, que não fica distante da fronteira com Mianmar, a inquietação causada pelos morcegos é exagerada. Existem 17 espécies de morcegos na área e somente duas são de morcegos que se alimentam de frutas, ligados ao coronavírus. O resto consome insetos.
“Mesmo antes da geração do meu avô nós recolhemos o estrume das cavernas”, disse Jaew Yemcem, 65 anos. “Eles não tiveram problemas e nós também não”.
Todas as manhãs aos sábados, antes do alvorecer, o templo permite que as pessoas que vêm recolher o esterco entrem no local, algumas usando um balaclava, gorro de malha que cobre a cabeça, o pescoço e os ombros, para se protegerem, entrarem nas cavernas e recolherem o material que será usado na produção de um fertilizante rico em nitrogênio. Muitos caminham descalços para caminhar melhor pelo terreno escorregadio por causa da condensação e das fezes dos animais.
O templo compra o esterco recolhido e o leiloa para fazendeiros ou intermediários agrícolas, que afirmam que o fertilizante deixa as goiabas mais doces e as papaias mais gordas.
Os coletores recebem 85 centavos por cada balde de esterco e conseguem recolher uma dezena de baldes por dia se tiverem sorte.
Em alguns países do Sudeste Asiático os morcegos são uma iguaria. Embora os armazéns do templo de Khao Chong Phran outrora vendessem morcegos para churrasco, os moradores da localidade não os consomem mais porque são animais protegidos, disse Supaporn, que pesquisa há décadas os morcegos da região.
Mas Prangthip Yencem, que trabalha como ajudante de cozinheiro numa escola local durante a semana, disse que o consumo, embora menor, continua. A carne do morcego dá um gosto bom em vários pratos, disse ela, como no caso de um salteado com pimenta e manjericão ou frito com alho e pimenta branca.
E o sangue do morcego, com uma dose de bebida alcoólica é um coquetel revigorante, acrescentou.
Os moradores da área não mais caçam morcegos desde que o abade os advertiu contra a prática. Mas se por acaso um morcego acabar voando e pousando num poste de telefone e despencar no chão, quem vai rejeitar uma comida grátis?
“Mesmo agora as pessoas consomem morcegos e elas não pegaram a covid”, disse ela. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO