A piada do escorpião e os ‘partidos Jay-Z’

Partidos vêm perdendo credibilidade por mudar de opinião nas barbas do eleitor

João Gabriel de Lima, O Estado de S.Paulo

O eleitor do DEM confia no DEM? A cantora pop Beyoncé confia no marido, o rapper Jay-Z? “Minhas suspeitas se multiplicaram depois que você mentiu”, canta Beyoncé ao som de guitarra acústica na música Resentment. Da mesma maneira, o eleitor do DEM tem todos os motivos para se sentir ressabiado depois do racha do partido em praça pública ao longo da semana.

O episódio reflete, de certa forma, o cisma mundial das direitas – “liberais” de um lado, “populistas” do outro, na nomenclatura utilizada pelos cientistas políticos. O ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia queria fazer do DEM um partido de centro direita estilo europeu, como o Democrata Cristão de Angela Merkel – ideológico e defensor da democracia. Para isso, afastou-se da estridência populista do bolsonarismo.

Na eleição para presidente da Câmara, no entanto, vários deputados do partido votaram em Arthur Lira, o candidato de Bolsonaro. O eleitor ficou desconcertado: o DEM, afinal, é oposição ou situação? Em crise de identidade, o partido rachou. Maia afirmou, em entrevista ao jornal Valor na segunda-feira, que o presidente do partido, ACM Neto, não tinha “coluna vertebral”. Na terça-feira, ACM acusou Maia de “descontrole” e atribuiu o cavalo de pau de vários deputados de seu Estado, a Bahia, às vicissitudes da política.

Congresso NacionalCandidato de Bolsonaro, deputado Arthur Lira foi eleito presidente da Câmara com o voto de vários deputados do DEM; a sigla é de oposição ou situação? Foto: Dida Sampaio/Estadão

É um jeito, digamos, “pragmático” de ver as coisas – mas que banaliza o nobre papel dos partidos nas democracias. Eles são instituições-chave nos regimes de liberdade. E vêm perdendo credibilidade no mundo inteiro por mudar de opinião nas barbas do eleitor. É o caso do DEM, que buscava uma pegada ideológica e sucumbiu ao fisiologismo – o Estadão revelou quanto dinheiro foi destinado às bases de cada deputado que mudou de voto. O partido se portou como na velha piada do escorpião e do sapo. O escorpião ferroou o sapo que lhe dava carona para atravessar o rio, quebrando a promessa de não atacá-lo. Antes que os dois morressem afogados, o escorpião disse: “Não pude evitar, é da minha natureza”.

Maria Díez-Garrido, doutora em comunicação política pela Universidade de Valladolid e personagem do minipodcast da semana, estuda partidos políticos e o que eles podem fazer para recuperar a credibilidade. Uma das palavras-chave é transparência – não ceder à “natureza” entre mãos-bobas no escurinho do Parlamento. Além de transparência – de ideias e financiamento –, Díez-Garrido propõe a criação de ferramentas que facilitem a participação dos eleitores e a construção de propostas junto com os cidadãos e com a sociedade civil.

Um estudo ainda inédito, apresentado por Díez-Garrido em seminário na Universidade de Lisboa, avalia partidos da Península Ibérica segundo esses critérios. Na Espanha o vencedor foi o PSOE, de centro esquerda. Em Portugal, apenas uma sigla foi “aprovada” com média superior a 50 pontos: o PSD, uma centro direita ideológica – parecida com o que o DEM se esforçava para ser.

O título do trabalho – “Da opacidade à abertura: a jornada necessária dos partidos políticos” – sugere que as siglas têm uma lição de casa a fazer para recuperar a confiança dos eleitores. A tarefa começa nos próprios sites, mas não se restringe a eles. Os “partidos Jay-Z” às vezes têm boas páginas (a do DEM traz até uma carta programática, que inclui uma rejeição veemente ao “populismo”). Não adianta, no entanto, ser moderno na web e uma piada velha no mundo real.

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By valeon