Senado aprova, em primeiro turno, PEC que retoma auxílio com contrapartidas fiscais
Governo conseguiu aprovar gatilhos para contenção de despesas no futuro, mas precisou se conformar com a retirada do fim dos gastos mínimos com saúde e educação do texto; senadores ainda analisarão o texto no segundo turno
Idiana Tomazelli, Daniel Weterman e Adriana Fernandes, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – A equipe econômica conseguiu driblar a ameaça de desfiguração do teto de gastos, a principal âncora fiscal do País, e obteve no Senado Federal a aprovação em primeiro turno do texto-base da PEC emergencial, que vai recriar o auxílio a trabalhadores vulneráveis na pandemia limitado ao custo total de R$ 44 bilhões. Se de um lado o ministro Paulo Guedes saiu vitorioso por manter no texto os gatilhos para contenção de despesas no futuro, de outro o governo precisou se conformar com a retirada de pontos como o fim da obrigação de gastos mínimos em saúde e educação.
A aprovação do texto-base teve apoio de 62 senadores, ante 16 contrários, no primeiro turno. Os chamados destaques (sugestões de alterações ao texto) foram rejeitados. Os senadores ainda vão analisar o texto no segundo turno, marcado para esta quinta-feira, 04. Em cada votação, é necessário o apoio de, no mínimo, três quintos do Senado, o correspondente a 49 de 81 senadores. Depois, a PEC segue para a Câmara dos Deputados, onde vai direto para votação em plenário.
O resultado veio no fim de um dia de grande tensão dentro do governo diante da ameaça de fatiar a PEC e votar apenas a autorização para o auxílio (o que foi rejeitado pelos senadores) e manobras para furar o teto (regra que limita o avanço das despesas à inflação) para além dos gastos com a pandemia. A equipe de Guedes precisou agir para evitar uma desfiguração do texto.
Lideranças do Senado queriam retirar R$ 34,9 bilhões em despesas com o programa Bolsa Família do alcance do teto, o que abriria espaço na regra para mais gastos com emendas indicadas por parlamentares e investimentos em obras às vésperas de ano eleitoral. A tentativa fez derreter os principais indicadores do mercado financeiro, o dólar chegou a bater R$ 5,76 e criou-se um clima de desconfiança em relação aos rumos da votação.
Nos bastidores, o time de Guedes precisou agir e travou uma verdadeira batalha com a ala política em torno da questão. A revolta foi tão grande que houve ameaça de novas baixas na equipe. Autoridades passaram a temer uma “destruição estrutural” das regras fiscais.
O ex-secretário do Tesouro Nacional Mansueto Almeida, hoje economista-chefe do BTG Pactual, alertou que o “truque contábil” poderia ampliar a desconfiança com a sustentabilidade do País, levando o Banco Central a acelerar o passo no aumento dos juros. “Uma PEC que deveria aumentar a confiança do arcabouço de ajuste fiscal do país corre o risco de ser percebida apenas como um instrumento para flexibilizar o teto dos gastos”, disse.
O economista-chefe da XP Investimentos, Caio Megale, que também já integrou a equipe de Guedes, avaliou que o cenário para a votação se deteriorava rapidamente e alertou que, com o Bolsa Família fora do teto, o “céu é o limite”. “Esse valor pode ser qualquer coisa”, afirmou.
Segundo apurou o Estadão/Broadcast, Guedes esteve com o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas nesta quarta-feira, 3, para discutir o impasse. No encontro, foi discutida a possibilidade de edição de uma Medida Provisória para o pagamento do auxílio sem aprovação da PEC. O próprio ministro do TCU sinalizou essa possibilidade em postagem no Twitter, numa tentativa de alertar para os prejuízos de fragilizar o teto.
Uma das linhas de negociação agora é usar a economia de recursos do Orçamento do Bolsa Família nos quatro meses de concessão do auxílio para reforçar o programa no segundo semestre.
No fim do dia, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), tratou que pôr fim aos rumores de manobra extrateto. “Não há a intenção nem a vontade, nem eu acredito que aconteça nenhuma votação de PEC no Senado e na Câmara que ameace o teto de gastos”, disse.
Crise de confiança
Apesar de a equipe econômica ter conseguido desmontar a articulação para tirar o Bolsa Família do teto de gastos, no mercado financeiro a sensação é de que o País está na porta de uma crise de confiança, mesmo que a âncora fiscal resulte intacta ao fim da votação. Os episódios envolvendo a desoneração do diesel, a demissão do presidente da Petrobrás, Roberto Castello Branco, a lentidão na compra de vacinas reforçam essa percepção negativa. A necessidade de atuação mais frequente do Banco Central para conter a volatilidade do câmbio é apontada como uma evidência do momento crítico.
No Congresso, não se descarta a possibilidade de algum destaque alterar o texto de última hora para ampliar o rol de despesas livres do alcance do teto. Na última semana, foram quatro pareceres oficiais, sem contar as inúmeras minutas elaboradas para “testar” alterações mais polêmicas, o que dá uma dimensão do vaivém em torno da proposta.
O próprio relator, senador Marcio Bittar (MDB-AC), indicou que não teria problema em incluir novas permissões, embora tenha mantido até agora o desejo da equipe econômica de preservar a âncora fiscal. “Se o programa social Bolsa Família tivesse que ficar fora do teto, eu não teria dificuldade de relatar e defender”, disse no plenário. “Mas fazemos uma PEC que não extrapola os limites que a Economia neste momento acha que são fundamentais”, ponderou.
O parecer de Bittar autoriza o governo a conceder uma nova rodada do auxílio emergencial e cria dois novos marcos fiscais: a emergência fiscal, quando a despesa elevada pressiona as finanças de União, Estados e municípios, e a calamidade nacional, quando há situações como a pandemia de covid-19. Em ambas, são acionados automaticamente gatilhos para contenção de gastos com salários de servidores, criação de cargos e subsídios.
Pela emergência fiscal, porém, os gatilhos só devem ser acionados entre 2024 e 2025, segundo previsão do secretário do Tesouro Nacional, Bruno Funchal. Isso coloca o ajuste em um cenário ainda longínquo para o governo do presidente Jair Bolsonaro. Ele poderia, por exemplo, conceder reajustes salariais em 2022, ano de eleição.
Mansueto foi um dos que criticaram a ausência de medidas mais duras de ajuste no curto prazo, embora tenha ressaltado que a aprovação da PEC é uma “excelente sinalização” de compromisso com a sustentabilidade das contas. “As contrapartidas não implicam nenhum corte imediato e obrigatório do gasto neste ou no próximo ano. Mas a PEC é muito importante porque fortalece o arcabouço fiscal”, afirmou.
A PEC autoriza o governo federal a decretar um novo estado de calamidade a qualquer momento para combater efeitos sociais e econômicos de uma crise, como a da covid-19. Nesse caso, o mecanismo permite ao Executivo aumentar gastos por meio de um processo simplificado, sem respeitar a maioria das limitações fiscais, e conceder benefícios como repasse a Estados e municípios e socorro a empresas. Como compensação, terá de acionar automaticamente os gatilhos e congelar salários e novas despesas obrigatórias durante a calamidade. Versão anterior do parecer acionava a contenção por dois anos após esse período, mas a medida recebeu críticas e ganhou uma versão mais branda.
A votação só foi destravada após desidratação da PEC. Um dos pontos retirados foi o trecho que acabava com a obrigação de gastos mínimos em saúde e educação. O relator também suprimiu o dispositivo que autorizaria o governo a reduzir jornada e salário de servidores para poupar gastos. Outro ponto que acabou caindo foi o fim dos repasses de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para o BNDES.