Combater variante verde-amarela é um problema a ser resolvido pelos cientistas brasileiros
O fato de possuirmos a própria cepa do vírus tem consequências importantes. Antes, todas as informações, tratamentos e vacinas descobertas em qualquer lugar do mundo se aplicavam ao Brasil; agora não
Fernando Reinach*, O Estado de S.Paulo
Em 2020 o Brasil foi invadido pelo Sars-CoV-2. Juntamente com o resto do planeta, batalhamos contra um único inimigo, o Sars-CoV-2 original. Em 2021 as coisas mudaram, o Brasil está enfrentando a própria variante do coronavírus, o Sars-CoV-2-P1, ou P.1, que surgiu em Manaus e já é responsável por mais da metade dos casos na maioria dos Estados.
Isso significa que agora o Brasil enfrenta uma variante específica do País, verde-amarela, gerada e selecionada aqui. Mas não estamos sozinhos: a Inglaterra também está enfrentando uma variante que surgiu por lá (inglesa ou de Kent), com propriedades diferentes das do vírus original. Em 2021 vamos ser forçados a trilhar o mesmo caminho, descobrindo como melhor combater a P.1.
O fato de possuirmos a própria variante tem consequências importantes. Antes, todas as informações, tratamentos e vacinas descobertas em qualquer lugar do mundo se aplicavam ao Brasil. Se na China o Sars-CoV-2 levava 20% dos infectados ao hospital e causava a morte de 0,5 a 1%, isso provavelmente valia para o Brasil. Se na Itália descobriram que a mortalidade aumentava com a idade e era maior em homens, isso valia para o Brasil.
Agora isso mudou. A P.1 não deve ser radicalmente diferente do Sars-CoV-2 original, mas muitas de suas características podem ser distintas e exigir providências diferentes. Exemplos: a P.1 se espalha mais rapidamente e com maior facilidade; será que o nível de isolamento usado em 2020 bastará para controlá-la? Os hospitais reportam a presença de mais jovens nas UTIs; será que isso se deve ao comportamento dessas pessoas ou a uma propriedade da P.1? As perguntas iniciais precisarão ser respondidas novamente.
O mais difícil nessa tarefa é que as investigações terão de ser feitas por cientistas brasileiros e seus colaboradores internacionais. Uma coisa é certa: em 2021 os países terão como prioridade investigar as variantes de seus territórios.
Os cientistas brasileiros já começaram a caracterizar a P.1. Os dados de um dos primeiros trabalhos são preocupantes. Os cientistas mediram a capacidade de neutralização dos anticorpos produzidos por uma infecção pelo Sars-CoV-2 e os produzidos pela vacina Coronavac frente ao vírus original e a variante P.1. O soro de 18 pessoas que se recuperaram de casos moderados de covid causados pela linhagem original e o de 8 pessoas vacinadas com a Coronavac foi usado no estudo.
No primeiro experimento foi medida a capacidade dos anticorpos das 18 pessoas que se recuperaram de inibir a penetração do Sars-CoV-2 original e da variante P.1 em células humanas. O resultado foi o esperado. O soro dos curados tem uma capacidade alta de inibir a entrada do vírus original, mas essa capacidade é 75% menor quando a variante P.1 é usada. Isso significa que os infectados pelo vírus original devem possuir uma capacidade reduzida de combater a P.1 e podem ter nova infecção.
Em seguida os cientistas repetiram o experimento com o soro das oito pessoas vacinadas com a Coronavac. Esse é o resultado mais preocupante. Os anticorpos presentes em 6 das 8 pessoas vacinadas têm capacidade de bloquear o vírus original. Mas nenhuma das oito pessoas vacinadas com a Coronavac possui anticorpos capazes de bloquear a entrada da variante P.1 nas células.
Esse resultado levanta a possibilidade de a Coronavac não proteger contra a P.1. Claro que esse é um estudo preliminar, feito em tubos de ensaio, com muito poucos vacinados (somente oito), e que ainda não foi revisado por pares. Mas os pesquisadores envolvidos são competentes e muito conhecidos. A AstraZeneca comunicou que sua vacina é capaz de neutralizar a P.1, mas ainda não mostrou os dados.
Combater um coronavírus verde-amarelo é um problema que tem de ser resolvido por brasileiros. Mais do que nunca vamos precisar dos nossos cientistas.
*É BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS, ESCORREGADOR DE MOSQUITO; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS