Maioria das áreas na Amazônia Legal não tem nem sequer 1ª fase de processo, indica estudo feito pelo Imazon
Giovana Girardi, O Estado de S.Paulo
Apontada pelo governo Bolsonaro como principal estratégia para conter a grilagem e, portanto, o desmatamento na Amazônia, a regularização fundiária esbarra em um fato que vai além do poder da União: cabe aos governos estaduais resolver a falta de titulação na maior parte das terras não destinadas na região.
É o que revela um levantamento inédito feito pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia(Imazon) sobre os gargalos da regularização fundiária na região frente aos projetos de lei que tentam resolvê-la.
O relatório “Dez fatos essenciais sobre regularização fundiária na Amazônia Legal”, que será lançado nesta quarta-feira, 24, estima que os Estados são responsáveis por decidir sobre o destino de 86,1 milhões de hectares – ou 17% da Amazônia Legal.
Segundo cálculos feitos pelos pesquisadores do Imazon, liderados pela especialista em gestão fundiária Brenda Brito, esse montante corresponde a 60% das áreas não destinadas ou sem informação sobre destinação na região. São áreas sem título para algum proprietário de terra oficialmente conhecido e que tampouco se encaixam em cadastros do Incra, das unidades de conservação ou de terras indígenas e de florestas públicas.
No entanto, a maioria das áreas estaduais nem sequer foi arrecadada, ou seja, não foram registradas em cartório, que é o primeiro passo para a destinação da área, seja para titulação privada ou outras formas de destinação. Essas áreas não arrecadadas representam 10% de toda a Amazônia Legal, de acordo com o levantamento.
O relatório aponta que, apesar do enorme desafio, falta planejamento para a arrecadação, o controle e a destinação desse território. E a situação é piorada, na avaliação dos pesquisadores, por leis estaduais que acabam incentivando a invasão de terras públicas e a grilagem.
Considerando as áreas não destinadas como um todo – da União e dos Estados –, elas respondem por cerca de 28% da Amazônia Legal, mas concentram uma boa parcela do desmatamento. Entre 2013 e 2020, segundo dados do Prodes (sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que fornece a taxa oficial de desmatamento), 40% da devastação ocorreu nessas áreas.
Por outro lado, chama atenção que cerca de um terço de todas as áreas não destinadas têm registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Uma parte pode ter direito de fato àquela terra, mas outra pode ter sido grilada – informação que teria de ser verificada pelos governos nos processos de regularização fundiária.
Segundo especialistas, o problema é que esse processo de desmatamento é desencadeado, em boa medida, justamente com o objetivo de resultar numa regularização de terra no futuro. “Os governos usam como argumento que a regularização fundiária vai resolver isso. De fato, é um instrumento para tirar as terras do mercado da grilagem, mas isso não vai conter o desmatamento se a legislação ficar sempre alterando o marco temporal sobre até quando uma ocupação pode ser regularizada”, explica Brenda.
Atualmente tramita no Congresso o projeto de lei 510/2021, que altera o marco temporal, flexibiliza os requisitos para a regularização, estende o procedimento simplificado para imóveis até 2.500 hectares e enfraquece as salvaguardas ambientais, entre outros projetos.
Discussão sobre o marco temporal
Atualmente tramita no Congresso o projeto de lei nº 510/2021, que altera o marco temporal limite para que a terra tenha sido ocupada a fim de ser regularizada, flexibiliza os requisitos para a regularização, estende o procedimento simplificado para imóveis até 2.500 hectares e enfraquece as salvaguardas ambientais, entre outros projetos.
Uma alteração na lei federal em 2017, no fim da gestão Temer, já tinha ampliado o marco temporal de 2004 para 2008, mas permitindo, em alguns casos, regularização até 2011, segundo Brenda. Já na gestão Bolsonaro passou a se buscar uma nova ampliação do marco.
Algumas leis estaduais, diz a pesquisadora, nem chegam a colocar uma data limite. Sete, dos nove estados da Amazônia Legal (exceto Amapá e Rondônia), não especificam um marco temporal para uma ou todas as formas de venda e doação de terras, informa o relatório.
“Não vai se conter o desmatamento com regularização fundiária se o marco mudar o tempo todo. Se isso fica em aberto, fortalece o ciclo: ocupa, desmata, pede o título da terra. E, se não pode, vai lá e muda a lei”, diz Brenda.
O Amazonas que, de acordo com o levantamento, é onde mais tem terras estaduais a serem destinadas, foi procurado pela reportagem, mas não se manifestou até o fechamento desta edição.
O Pará, indicado no estudo como um Estado que pode ser um dos primeiros na Amazônia a arrecadar terras de forma mais planejada, disse que 21,67% do território é de governança exclusiva do Estado, e que a maior parte já foi identificado, arrecadada e matriculada em nome do Estado do Pará.
“Todas as ações do estado que estão em execução tem como objetivo combater a grilagem e o desmatamento, além de proteger, beneficiar, prestigiar e contribuir com o desenvolvimento de quem de fato produz e nunca teve a oportunidade de se regularizar”, disse o governo do Pará, em nota.
“É por meio da regularização fundiária que criamos uma cadeia de prosperidade. A medida também resultará na redução da necessidade de mais espaço para produzir, consequentemente, a redução do desmatamento”, completou o governo.