Que o manifesto propicie uma conversa madura entre liberais, social-democratas e desenvolvimentistas
João Gabriel de Lima, O Estado de S.Paulo
“Chile, la alegria ya viene.” Quem assistiu ao filme No, que concorreu ao Oscar de 2013, não esquece o refrão. Ele foi mote de uma campanha histórica. Em 1988, um plebiscito decidiria se o ditador Augusto Pinochet deveria, ou não, continuar em sua cadeira até 1997. A população torpedeou o autocrata com um rotundo “No!”. Foi um raro – e belo – momento em que uma democracia derrubou uma ditadura pelo voto.
O que se seguiu foi igualmente histórico. Socialistas e democratas-cristãos, adversários de décadas, se uniram com o intuito de consolidar a democracia, juntando partidos de esquerda e de direita. O arranjo, conhecido como “Concertación”, durou mais de 20 anos, como lembra o cientista político argentino Andrés Malamud, especialista em América Latina e personagem do minipodcast da semana. O logotipo do movimento era um arco-íris.
É inevitável pensar na “Concertación” ao ler o Manifesto pela Consciência Democrática, assinado por seis presidenciáveis. Há apelo à convergência e defesa intransigente dos regimes de liberdade. A união de todos, no entanto, não é óbvia. Entre os signatários há tendências políticas de amálgama difícil.
João Doria, Eduardo Leite, João Amoêdo e Luiz Henrique Mandetta integram a centro-direita. Em alguma medida, os quatro estiveram com Jair Bolsonaro ou se beneficiaram dos votos de seu eleitorado em 2018. O rompimento implícito no manifesto mostra que o campo “azul” quer se reconstruir bem longe do presidente. Um dos quatro nomes acima poderá representar a tendência liberal em 2022.
Ciro Gomes não pertence ao mesmo clube. Seu programa de governo – que já foi até publicado em livro – é de matriz desenvolvimentista. Ele vai disputar a centro-esquerda com Lula, a quem pediu nesta semana que desse um “passo atrás”. É difícil imaginar Lula cedendo a cabeça de chapa a Ciro, mas o fato mostra que ambos disputam o campo “vermelho”. Ciro evocou o caso argentino, em que Cristina Kirchner, em 2019, topou ser vice de Alberto Fernández, de modo a unificar as diversas alas do peronismo – outro episódio lembrado por Malamud no minipodcast.
Luciano Huck ainda não decidiu se será candidato. Em entrevista recente ao Estadão, um de seus mentores, o ex-governador capixaba Paulo Hartung, situou o apresentador na centro-esquerda. Para ele, Huck partiria em busca do eleitor social-democrata. Um eleitor que gostava do PSDB progressista de Fernando Henrique nos anos 1990 e aprovou o Lula da “Carta ao Povo Brasileiro” – com os ortodoxos Palocci, Meirelles e Marcos Lisboa na equipe econômica. Seria o candidato “lilás”.
O governo Bolsonaro fracassou em diversas áreas-chave, entre elas a gestão da pandemia – o que levou, inclusive, à determinação de abertura de uma CPI anteontem, com assinaturas de senadores do PSDB ao PT. É natural que enfrente não apenas uma, mas várias oposições, da centro-direita à centro-esquerda.
Se é difícil que as cores de nossa democracia se juntem no tal arco-íris, que o manifesto ao menos sele, como sugere o jornalista Pedro Venceslau no Estadão, um “pacto de não agressão”. Que propicie uma conversa madura entre liberais, social-democratas e desenvolvimentistas – os três grupos que há 30 anos disputam corações e mentes em nosso debate, e que hoje se opõem a Bolsonaro. Num cenário otimista, em 2022 o Brasil começará a emergir dos escombros. Cabe às oposições trazer propostas concretas para reconstruir um país devastado.