Bruxos da dissipação da verba pública não desanimam
Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
O teto de gastos públicos, instituído pela Emenda Constitucional 95, aprovada em 2016, é uma das grandes conquistas da sociedade brasileira. Atacado desde o nascedouro pelos que acham que dinheiro surge do nada, o teto pretendia restabelecer a racionalidade na elaboração do Orçamento Federal – a pouca que havia fora ferida de morte no desastroso governo de Dilma Rousseff. Desde então, uma vez que o mecanismo impõe um limite para as despesas, os representantes eleitos pelo povo são obrigados a discutir periodicamente quais são as efetivas prioridades do País – algo que é próprio de uma democracia digna do nome.
O problema é que, na democracia brasileira, o debate sobre os gastos tem passado muito longe dos interesses da sociedade e das futuras gerações, limitando-se a uma disputa privada por pedaços do Orçamento para saciar a voracidade de parlamentares e a demagogia de governantes.
Com o teto de gastos, essa disputa, que normalmente já é bastante dura, se tornou particularmente feroz, pois o mecanismo impede que as despesas cresçam, em seu conjunto, além da inflação do ano anterior, seja qual for o desempenho da economia.
Há duas maneiras de lidar com esse limite. Uma é civilizada e democrática, por meio de trabalhosa negociação política a respeito das prioridades; a outra, essencialmente antidemocrática e irresponsável, é inventar um Orçamento, com despesas acima das receitas, e depois buscar maneiras “criativas” de burlar o teto de gastos, tornando-o letra morta, malgrado estar inscrito na Constituição.
Infelizmente, a classe política e dirigente em Brasília, a despeito de suas juras de respeito pelo teto de gastos, parece inclinada a seguir o caminho mais fácil e menos democrático de lidar com o Orçamento. Não foram poucas as ocasiões, na longuíssima tramitação do Orçamento deste ano, em que tanto o governo como sua base parlamentar apresentaram fórmulas mágicas para criar receita onde não existe – em geral sacrificando programas sociais, aposentadorias e, às vezes, a própria aritmética.
A última investida está no forno. O Estado teve acesso ao pré-projeto de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) em estudo para permitir um gasto de R$ 18 bilhões em obras patrocinadas por parlamentares fora do teto de gastos. O governo tenta reduzir o valor para R$ 15 bilhões.
Como sempre, a aberração estará revestida das melhores intenções. No total, a PEC liberaria até R$ 35 bilhões em gastos fora do teto, por meio de créditos extraordinários, sob a justificativa de que é preciso bancar programas para atenuar os efeitos da pandemia de covid-19. Nessas condições, o gasto não entraria na contabilidade da meta de resultado primário, que é a diferença entre receitas e despesas, nem na regra de ouro, que impede a emissão de dívida para despesas correntes.
Do total, R$ 17 bilhões dizem respeito efetivamente aos efeitos da pandemia, pois serviriam para financiar um programa de crédito para pequenas empresas e a redução de jornada e salários de trabalhadores, além de atender a demandas do setor de saúde. O restante, contudo, seria destinado a “outras despesas que tenham por objetivo atenuar os impactos sanitários, sociais e econômicos, agravados durante o período da pandemia”, como está escrito no pré-projeto. É a senha para bancar obras encomendadas por emendas de parlamentares fora do teto de gastos.
Seria uma forma marota de superar o impasse no Orçamento, que se tornou um compêndio de crimes de responsabilidade por tirar dinheiro de despesas obrigatórias para custear obras de interesse dos congressistas. Mais uma vez, a ala da equipe econômica que ainda não se rendeu aos imperativos eleitorais do presidente Jair Bolsonaro e do Centrão, esteio de seu governo, pretende dificultar essa iniciativa.
Não se sabe se o pré-projeto prosperará – diante da repercussão negativa, o Ministério da Economia tratou de dizer que é apenas um estudo – , mas a simples existência de um debate sobre essa evidente gambiarra mostra a importância do teto de gastos. Se o limite constitucional não é capaz de desanimar os bruxos da dissipação do dinheiro público, imagine o leitor, apenas por um instante, se o teto não existisse.
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