‘É preciso recuperar a sobriedade do Itamaraty após o banho de obscurantismo que se impôs àquela Casa’; leia a crônica de Hussein Kalout

Hussein Kalout*, O Estado de S.Paulo

Olá meu jovem, como você está? Ah, sim, voltei. A causa é nobre e imperativa. Quero transmitir uma singela mensagem ao novo chefe do Itamaraty. Vamos, vamos, estou apurado! Finalmente, o inominado foi despachado para fora da cadeira que com tanta dignidade leguei a tantos sucessores. Sabe meu jovem, é preciso recuperar a sobriedade do Itamaraty após o banho de obscurantismo que se impôs àquela Casa. Tá chegando o Dia do Diplomata e dois dedos de prosa no pé do ouvido do novo incumbente serão mais do que necessários.

Note, meu rapaz, a reclamação no céu é generalizada. Nossa reputação lá no além está na lona. Os meus pares estrangeiros mal conseguem acreditar como o nosso país foi arrastado para o fundo do poço. Seja na economia, no meio ambiente e agora com essa pandemia mortífera. Ah, se é a culpa do presidente? É culpa de tanta gente que não cabe aqui tecer um tomo de consideração. Muita gente caiu no conto do vigário. Uns por opção e outros….deixe para lá! Vamos, por favor, me ajude aqui com essa caixa. O que tem nela? Acalme-se, segure a sua curiosidade, meu rapaz! No final te explico. No final!

San Tiago Dantas me implorou a aconselhar o novo chanceler de que é preciso, urgentemente, reorganizar as linhas estratégicas da política externa. Veja, meu rapaz, o dano foi tamanho que o altíssimo está boquiaberto com nosso Brasil. A última coisa que ele quer ouvir é que “Deus é brasileiro”. Quem poderia imaginar que um país miscigenado como o nosso iria sucumbir a uma seita escabrosa como essa que se instalou no poder. É inimaginável pensar que suprematistas delinquentes tomaram conta das mais elevadas funções da nação.

Barão do Rio Branco
Ilustração do Barão do Rio Branco na capa da revista ‘O Malho’ de agosto de 1908 Foto: O Malho

O “cabeção” está em estado de revolta. Quem é o “cabeção”? É o Rui Barbosa, ora! A nossa imortal enciclopédia jurídica! Por que ele está todo “enfezado”? Você não viu o que ocorreu no Senado da República? Ele queria até vir comigo para papear com os confrades daquela Casa. Foi um ultraje o que lá ocorreu. Me sinto até constrangido em replicar as palavras do distinto Horácio Lafer. Esbravejou e com razão. Aqueles cujas família sofreram com a indignidade do Holocausto nazista estão todos revoltados em ver como o extremismo tomou conta do nosso país. Não se pode esquecer a história, meu jovem!

Repare você, até o velho portuga pernambucano veio falar comigo. Quem é ele? Ah…Oliveira Lima, um velho desafeto. Coisa do passado. Lá em cima ficou tudo superado. Aturdido com a pasmaceira que se tornou a nossa diplomacia, o velho Lima veio me pedir para alertar o novo chefe do Itamaraty que é preciso altivez e serenidade no exercício dessa difícil função. A genialidade dele me causava certa inveja. O chamavam de o “embaixador intelectual do Brasil”.

Aliás, em nossa última confraria o Luís Felipe estava com aquela cara enraivecida. Quem é? O Lampreia, meu jovem. Um sucessor meu que exerceu com recato a função de ministro do exterior. Entre conversa e outra, ele não se refutou em questionar como seria aceitar ser ministro de um presidente distópico, irascível e que afundou o país nesse descambo humanitário que o povo vive. Não é fácil, meu jovem, compor um gabinete ministerial com um cemitério de 370 mil mortos e um inapagável passivo de um Brasil totalmente desgovernado.

Argumentei, na tentativa de acalmá-lo, que deveríamos estar aliviados pela troca no nosso Itamaraty. Disse a ele que precisaríamos compreender que não cabia ao chanceler recusar tal missão. Um funcionário de Estado que dedicou 30 anos de sua vida profissional a uma instituição como é o Itamaraty, não estaria em condição de se eximir da tarefa de ajudar a sua própria Casa e seus pares da desventura que sobre eles e sobre o Brasil foi lançada. Como? Se ele estava muito bravo? Estava esbravejando. O Vasco e o Afonso tentaram acalmá-lo da agrura que dominava o seu ímpeto.

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O Palácio do Itamaraty, em Brasília  Foto: Dida Sampaio/Estadão

Que Vasco???  Não, não, não, não é o time de futebol da segunda divisão do futebol brasileiro, meu jovem! Se estou sabendo que eles são os fregueses do Flamengo. Ah, meu jovem, disso o universo inteiro sabe. Aliás, nos convescotes da brasileirada o pessoal da fuzarca não quer saber de futebol. Quando o mestre Ziza e o Didi Folha Seca começam a falar do “Mais Querido do Brasil”, os vascaínos logo se escondem. Quem é o seu Didi? Não, meu jovem, não é humorista de “Os Trapalhões”. Como diz o hilário Mussum da Mangueira em nossas rodas de mé: “a ignorância reina a galopis no Brasil…cacildes!” Conheces da televisão. Entendi! Enfim, voltemos ao nosso foco. Falei do Vasco Leitão da Cunha. Um diplomata conservador e de bom tirocínio. Não é um desses conservadores mequetrefes de hoje em dia, meu jovem!

Ah, quer saber quem é o Afonso…? Isso? É o Arinos de Mello Franco. Foi chanceler do Jango, o último presidente antes do regime militar inaugurado em 1964. Os generais? O que tem? Estão pê da vida com o presidente atual? Não é para menos, estavam ou estão sendo arrastados pelo atual mandatário para fundo do buraco. Soube que caiu toda a cúpula da Defesa do país em 24 horas. Santo Deus, quanto desatino. O Caxias está em polvorosa. Caixa? Que caixa? Não, esquece a caixa. Segura a sua curiosidade. Falo de Duque de Caxias, o patrono dos Verde Oliva, o Exército Brasileiro. Ah… o quê? O presidente disse que é dele o Exército? O quê…? Chamou de “seu”, foi? Não é possível! As Forças Armadas são patrimônio do povo brasileiro. Coitado do presidente Ernesto…tá enlouquecido com o tenente Bolsonaro. Ah, é capitão?! Certo! Araújo..? Não, não é o inominável. Esse tem muita conta a prestar ao altíssimo! Falo do presidente Geisel. Enfim, deixa para lá…

Como será a minha conversa como novo Chanceler? Direi ao França, se consignar essa intimidade é claro, o que penso com toda franqueza. Embaixador de onde? Da França? Não, meu rapaz. Falo do meu sucessor, o embaixador Carlos França. O Evandro Lins e Silva disse que seria uma loucura aceitar ser ministro do exterior de um homem com pouco apreço pela democracia e pelo Estado de direito.

O Domício da Gama, arguto como é, sublinhou que seria ato de acovardamento se o jovem embaixador França tivesse recusado a designação. Recusar a missiva, alertou Domício, lançaria em desgraça o indicado junto ao próprio presidente e ainda junto aos seus companheiros de carreira. Não somente seria chutado para fora do Palácio do Planalto como assessor presidencial, mas, seria posto ao relento.

Quando defrontados com a tentativa de compreender como é aceitar servir a um presidente da República cujo seu confesso projeto internacional, desde o nascedouro, se esmerava na destruição do corolário doutrinário da nossa política exterior e na refundação dos cânones de regerem a nossa diplomacia desde os tempos do Conselho do império, é de fato escabroso. Se passou pela cabeça dele quais seriam as consequências? Penso que sim! A seu favor, cabe alegar que se cercou de duas boas cabeças. Juntou a experiência com a capacidade de formulação. Indicou um bom secretário-geral para as relações exteriores e competente diplomata para a chefia de gabinete. Mas, o problema é se terá autonomia e independência para trabalhar.

Não irei me furtar em lhe transmitir a mensagem de Ítalo Zappa: “não se esqueça da África”. Será preciso tirar da inércia a nossa relação bilateral com os países daquele continente. Pois, não podemos negar a nossa ancestralidade. Precisamos lembrar de onde viemos e quem somos!  Ah, e o Simon me indagou outro dia sobre os nossos crassos erros na América do Sul. Disse-me com todas as letras que estamos à deriva. Quem é o Simon? É o Bolívar, meu jovem. Conhecido como “El Libertador” de Américas. O que? Amigo de Chávez? Não creio que sejam, meu jovem. Não creio. Se o Brasil demorar a recobrar a sua capacidade de atuar no xadrez sul-americano, será tarde e o vácuo por nós deixado não será mais recuperado. Quem não lidera em sua própria região, não liderará em lugar algum, meu jovem! Sempre buscamos ser os promotores da paz e indutores do desenvolvimento em nossa vizinhança. E hoje já padecemos do respeito de nossos irmãos sul-americanos. É muito grave, meu jovem! É o maior risco estratégico ao interesse nacional!

Chegamos, Chegamos! Me ajude a descer, por favor! Essa minha protuberância é um caso sanitário! Ah…se eu vou falar com o Presidente sobre a crise sanitária?! Ah, não! Deste Senhor eu já desisti. Não há a menor condição! Espero que o Brasil acorde logo e veja o descalabro em que virou a República.

Pegue a caixa também. O que há nela? És um curioso teimoso! São três livros para o meu novo sucessor. Talvez ele já os tenha lido. Mas, não custa revisitá-los. Um deles é do melhor chanceler que o Brasil nunca teve o privilégio de ter. A Diplomacia na Construção do Brasil de Rubens Ricupero. Uma grande obra! O outro é do mestre dos mestres: Casa Grande e Senzala. Do imortal Gilberto Freyre. Ah, como? Se é comunista? Oh, céus! E o último é Raízes do Brasil do magnífico Sérgio Buarque de Holanda.

Sabe, meu jovem, está na hora de devolver ao Itamaraty o mínimo de integridade e ao ofício de ministro do exterior a sua devida dignidade! O Brasil está exaurido de tanto desvario. Grato e até breve, meu jovem!

*HUSSEIN KALOUT, é cientista político, professor de Relações Internacionais e pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018).

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