Os anos encolheram minhas necessidades, costumes e raio de ação, sem tolher a felicidade
Vittorio Medioli – Jornal o Tempo
Nunca imaginei chegar a um bolo de creme para soprar 70 velinhas.
Já passei por muitas, graves e até inexplicáveis circunstâncias, e continuo movido por um ímpeto quase juvenil. Como se o tempo não tivesse oxidado minha alma.
Os anos encolheram minhas necessidades, costumes e raio de ação, sem tolher a felicidade.
A coluna curvou, a pele e os cabelos ressecaram, mas a calma ficou mais fácil de ser alcançada.
As aspirações, também, não são mais mirabolantes. Agora desço em campos apenas para enfrentar injustiças, amenizar sofrimento, ajudar a me sentir bem, mesmo sem qualquer agradecimento. No momento que alcancei consegue-se aplaudir até adversários, “inimigos declarados”, reconhecendo neles a companhia proveitosa para mim na longa viagem. Neles vejo a razão da superação, o cumular de experiências, o aprendizado para estar mais preparado e um pouco mais sábio.
Na última semana me surpreendi com a reação espontânea que tive quando um jovem político, que sentiu seu partido destratado por mim, mandou o recado de que usará (ou intensificará) suas maldades nas redes sociais e confidenciou que isso poderá custar-lhe não mais escrever no jornal que fundei. Enganou-se. Respondi que continuará com o mesmo tratamento de sempre e que as maldades são um sério problema dele, já que não duram para sempre, e que a justiça divina dará a resposta, mesmo no meio das risadas dos descrentes.
Nesta minha vida, tão rápida e fugidia, vi que a justiça de outras esferas não falha e desce aqui mesmo, na forma de tristeza, de doenças, de infortúnios.
Aprendi a considerar que defeitos de outros precisam ser vistos com moderação, pois todos nós temos ainda muitos deles para superar.
Felizmente, passei a ver os adversários como úteis e estimulantes, que precisam ser tratados, quando não podem ser esquecidos, pelas leis desta terra, e perdoados pelas leis divinas.
Sinto-me espiritualmente mais desperto e sensível, melhor a cada dia, sem pânico ou preocupação com o fim da vida. Esse sentimento me atormentava na juventude. Hoje, seja quando for, será no momento certo e bem-vindo. Já o vejo como o começo de outro estado da vida, sem esta carne velha. Emprestado de Shakespeare, lembro: “Apaga-te, apaga-te, fugaz tocha! A vida nada mais é que uma sombra que passa, um pobre histrião que se pavoneia e se agita uma hora em cena, e, depois, nada se ouve dele. É uma história contada por um idiota, cheia de fúria e tumulto, que nada significam”.
Sou cristão, sou budista, sou sufista e não nego a qualquer religião a sua bondade e suas limitações. Sem Deus, a vida seria um tormento. A ciência, apenas a ciência, é uma lata que enferruja. Deus é o passado, o futuro, o infinito que me sustenta e protege.
Tenho como dever ser justo, não me envergonhar frente a esse Deus que me deu vida e uma missão. A justiça é a maior garantia dos oprimidos, dos humildes, dos sem voz, dos que sofrem. É minha obrigação.
É estranho, entretanto, deparar-se com uma justiça, nesta terra, falha e vesga, limitada e incerta, quando exercida pelos homens.
Convenci-me: o sentido de estar vivo, aqui e agora, se liga a uma missão que aparece a cada instante, renovando seu nome, aspecto, intensidade.
Nos 70 anos que vivi, meus olhos viram festas de arromba na véspera de desastres, como derrotas penosas diante das maiores vitórias. Nunca vi alguém ficar realmente impune aos sofrimentos desnecessários que provocou. Notei que existe uma regra natural, divina, poderosa, que regula a grande representação no palco terrestre.
Deparei-me com “invencíveis” Golias derrubados por um simples descuido. Soberbos quebrados por uma casca de banana, fantoches que se desfazem quando os fios arrebentam. Já vi humilhados, serenos e confiantes, contarem seus torturadores levados pela correnteza.
Senti que o poder e o dinheiro são empréstimos temporários, que dão alegria e geram tormentos. Senti que a glória é uma ilusão, que passa mais rápido que a juventude. Registrei que quem comemora com exageração é o mesmo que esquece que voltará a sofrer derrotas.
O sábio comemora a verdadeira vitória com compaixão do derrotado.
A ciência não é exata, mas relativa, maior que ela é a cadela que dá à luz os seus filhotes numa galeria abandonada e os defende sacrificando a própria vida.
Com 70 anos me convenci de que a paciência, a benevolência, a honestidade, o respeito à verdade – atitudes ao alcance de qualquer um – acabam proporcionando a felicidade. A maior felicidade está na ausência de desejos, de pretensões, reside no ato de receber o que vem como alegria, sentir na dor uma experiência e o pagamento que estamos realizando de uma dívida.
A maior felicidade foi medida em monges orientais que vivem sem teto, apenas de restos de comida. São aqueles que oferecem aos abutres a carne dos familiares recém-falecidos, dando-lhe utilidade, como tudo tem que ter.
O estoico imperador Marco Aurélio repetia: “Viva sempre como fosse o último dia de sua vida”, não chorando a perda de um corpo, porque na eternidade um dia, uma semana ou cem anos são granéis que não valem pelo volume, mas como diamantes pela pureza e beleza. Melhor um dia bom com honradez e bondade do que cem anos desperdiçados numa longa agonia sem proveito para o mundo.
A idade altera os desejos, as necessidades, seleciona o que tem de melhor, de mais simples, apaga os sonhos deslumbrantes. Gratifica na capacidade de adorar a beleza dos seres vivos, reconhece o esplendor da juventude, como a pureza de um olhar maduro. Aprecia na simplicidade a elegância mais agradável. Concede, com bastante proveito, a capacidade de ler nas feições das pessoas o que se passou em suas vidas, permite antever o futuro deles em sílabas e pequenos gestos. Passa-se a ter uma terna atitude com os jovens, que, por não terem vivido tanto, se confundem nos julgamentos, se atormentam nas aspirações. E com essa idade se passa a ter mais determinação em ajudá-los.