Automação
Gazeta do Povo

Hooded computer hacker stealing information with laptop on colored studio background

Senadores e deputados receberam quase dez milhões de e-mails automatizados em poucos dias. Especialista em direito digital aponta ilícito civil| Foto: Freepik

Para impedir a aprovação de um projeto de lei no Congresso, que autorizava empresas a adquirir vacinas contra a Covid-19 para imunizar seus funcionários, uma ONG de ativismo de viés progressista decidiu colocar em prática, no mês de abril, uma campanha de pressão massiva a parlamentares. A estratégia consistia em utilizar uma plataforma própria para encher as caixas de e-mail de deputados e senadores selecionados pela ONG com milhões de e-mails a ponto de inviabilizar o fluxo de comunicação dos parlamentares.

Em poucas semanas, a ONG Nossas “bombardeou” 12 senadores com quase dez milhões de disparos de e-mails com mensagens idênticas – uma média de 786 mil mensagens para cada um. Na Câmara dos Deputados, ao todo foram 260 mil envios distribuídos a 27 parlamentares.

Para financiar os disparos, a Nossas, que recebe doações milionárias de financiadores estrangeiros (entre 2016 e 2019 a rede Nossas recebeu equivalente a R$ 6 milhões em valores atuais apenas de George Soros, um dos seus doadores), decidiu criar uma nova campanha, desta vez solicitando doações para cobrir os gastos com os disparos de e-mails, que totalizaria R$ 45 mil.

A estratégia de disparos massivos não é uma novidade na rede de ativismo. Periodicamente são lançadas “campanhas de pressão” nas quais simpatizantes de causas apoiadas pela ONG são convidados a preencherem formulários com nome e e-mail em uma plataforma. A partir daí, são enviadas cópias de uma mesma mensagem padrão a diversos parlamentares pré-selecionados. É possível alcançar centenas de vereadores, deputados estaduais e federais e senadores de todo o Brasil em segundos, com um agravante: não é preciso efetuar um cadastro ou confirmar que o nome e e-mail informados são verdadeiros.

Não há, também, nenhum mecanismo anti-spam, como o captcha, que demanda uma ação humana para finalizar o envio. Na prática, é possível preencher o formulário seguidamente com dados diferentes – aumentando o volume de e-mails enviados e gerando uma percepção artificial do quantitativo de apoio a uma determinada pauta –, além de a plataforma facilitar a atuação de robôs para automatizar envios sequenciais.

Conheça a ONG dona da plataforma que criou um site usado pelo Sleeping Giants
CUT também cria plataforma de disparos massivos
A Central Única dos Trabalhadores (CUT) também criou sua própria ferramenta de pressão a parlamentares para influenciar decisões legislativas nos âmbitos municipal, estadual e federal em projetos de seu interesse. A plataforma, denominada “Na Pressão”, cria campanhas de disparo massivo relacionadas a projetos de lei específicos (iniciativas contrárias à reforma administrativa, à privatização da Eletrobrás e à vacinação da Covid-19 pelo setor privado são exemplos de campanhas recentes) e lista todos os parlamentares de uma casa legislativa com seus respectivos posicionamentos quanto à pauta em questão.

Aos que têm posição contrária à visão da CUT, o site orienta o uso da plataforma para enviar mensagens por e-mail, WhatsApp e redes sociais dos parlamentares. Ao entrar numa campanha, o usuário pode enviar de uma só vez e em poucos segundos e-mails para todos os políticos – mecanismo chamado de “Ultra Pressão” – ou pode disparar mensagens automáticas pelo WhatsApp dos parlamentares; em alguns casos são divulgados telefones pessoais.


Parlamentares citam automação e perfis falsos nos disparos massivos
À Gazeta do Povo, o deputado federal Paulo Martins (PSC-PR) afirmou que a frequência e o volume desses disparos automáticos têm aumentado progressivamente. “Esse é um sistema de intimidação. Algumas dessas mensagens são intimidatórias – as educadas dizem apenas que você não vai se reeleger se não votar de acordo, mas têm várias em tom ameaçador, em outros níveis”, diz Martins.

O deputado, que é membro da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara, revelou que, na semana em que a comissão votou o relatório da reforma administrativa, recebeu cerca de cinco mil mensagens em seu WhatsApp pessoal a partir da plataforma da CUT, a ponto de inviabilizar o uso do seu smartphone para a atividade parlamentar. “A maioria dessas mensagens vem de sindicatos. E os sindicatos acabam alcançando pessoas que não são necessariamente da base deles, como os concurseiros”, diz o deputado, citando que os envios também têm tornado o e-mail um canal de comunicação com a população quase inviável diante do alto número de mensagens automatizadas.

Segundo o deputado Marcel van Hattem (Novo-RS), apesar de já ter recebido 700 mensagens automatizadas simultâneas em seu WhatsApp, recentemente o número de mensagens tem se mantido em torno de 300. “Esses disparos massivos atrapalham bastante o dia a dia de trabalho sem acrescentar nenhum argumento. Eu costumo denunciar e bloquear o contato, afinal é uma prática que não está agregando ao debate”, pontua o parlamentar.

Para o deputado Diego Garcia (Podemos-PR), o canal de comunicação deve estar sempre aberto, uma vez que ouvir a população é uma das atribuições centrais dos deputados. Ele diz, porém, que apesar de haver uma causa legítima por trás das mensagens automatizadas, essas ações contribuem para uma percepção artificial, por parte dos parlamentares, quanto à magnitude do tema em discussão.

“Sabemos que muitas dessas mensagens, principalmente as que recebemos em massa, são orientações de sindicatos, grupos de interesse, tanto de esquerda quanto de direita, e que às vezes são automatizadas”, afirma Garcia. “O uso de robôs existe e nos deparamos frequentemente com isso. Independentemente do viés da mensagem, é fácil identificar quando se trata de um perfil falso”.

Paulo Martins também aponta possível uso de robôs nos disparos. “A automação existe, assim como há também manuseio humano. Já respondi algumas e em alguns casos tive resposta humana, em outros não. Percebo que tem as duas coisas”, declara. “Todos os parlamentares reclamam disso, especialmente aqueles de centro-direita, porque essas pressões corporativistas costumam vir mais da esquerda”, opina o deputado.

A reportagem identificou que o Movimento Brasil Livre (MBL) recentemente criou um site para a campanha Emenda Antiprivilégio, que tem como objetivo pressionar parlamentares a assinar uma emenda que inclui políticos, juízes e membros do Ministério Público na Reforma Administrativa. No site, o movimento pede aos usuários que pressionem os deputados que ainda não decidiram por assinar a emenda e divulga os e-mails e endereços das redes sociais dos parlamentares. Não há, entretanto, nenhuma ferramenta de automação para os disparos – cabe a cabe usuário fazer a pressão individualmente.

Disparos não são classificados como spam, mas podem ser abusivos e configurar ilícito civil
Emerson Grigollette, advogado especialista em Direito Digital, afirma que o acompanhamento e a proximidade da sociedade à classe parlamentar – inclusive ao cobrar posicionamentos e pedir atenção a determinado projeto normativo sujeito à aprovação – é algo positivo para um Estado democrático. Ele pontua, no entanto, que os disparos massivos em questão, valendo-se de tecnologias para pressionar artificialmente membros do Legislativo significa abuso desse direito. “Não me parece apenas uma prática antiética, mas ilícita, porquanto pode até mesmo prejudicar a atividade parlamentar que também se vale da tecnologia para comunicar-se e muitas vezes resolver questões urgentes”, cita o advogado.

De acordo com Cristine Hoepers, do Centro de Estudos, Resposta e Tratamento de Incidentes de Segurança no Brasil (CERT.br|NIC.br), as práticas de disparo massivo citados na reportagem não se enquadram necessariamente em spam, porém as plataformas são vulneráveis à atuação de robôs. “A definição de spam implica em ser enviada uma mensagem em massa para um grande número de pessoas, em geral, utilizando botnets. No caso dessas mensagens é diferente, pois apesar de serem milhares de mensagens, o envio se dá através de uma plataforma facilitadora utilizada por várias pessoas”, afirma. “Cabe ressaltar que há sempre a possibilidade desta plataforma ser abusada por terceiros, caso não tenha um sistema robusto para garantir que são pessoas que estão participando do processo de envio, como por exemplo com o uso de captchas”.

Para Grigollette, ainda que a prática fosse enquadrada como spam, tal ação não é considerada crime no Brasil. Ele explica, entretanto, que os disparos em questão são decorrentes de abuso do direito do cidadão de cobrar as autoridades, por vias artificiais, e que podem ser tidos como ilícito civil, com base no artigo 9º do Marco Civil da Internet junto ao artigo 5º do decreto regulatório 8.771/16.

“A prática desse tipo de disparo – milhares ou milhões de envios de uma mesma mensagem a uma única pessoa é algo tão indesejado e prejudicial quanto o spam tradicional, pois fatalmente criará o alagamento de servidores e consequente prejuízo à própria atividade parlamentar”, afirma o especialista em Direito Digital.

“Ao meu ver, trata-se de um ataque virtual que não pode ser confundido com o legítimo direito de defesa de determinada pauta”, destaca.

Para o advogado, parlamentares que comprovarem prejuízos à sua atividade devem inicialmente recorrer a mecanismos de filtragem e bloqueio de domínios – sob o risco de perder informações importantes; em um segundo momento, devem contatar a CGI.br como autoridade de fiscalização; e, como última via, recorrer ao Judiciário, para que a prática seja impedida.

Outro lado
Em nota, a assessoria de imprensa da CUT informou à reportagem que “O Na Pressão não faz um único disparo, quem faz são pessoas exercendo sua cidadania, algo fundamental em um Estado Democrático de Direito. E se as pessoas enviam 5 ou 10 mensagens para seus representantes, isso não pode ser considerado um abuso, seja ele de qualquer ordem, e sim um direito de pressionar o parlamentar que está no Congresso Nacional para representar o povo”.

“Avaliamos que o uso de robôs em redes sociais espalhando fake news, como os que contribuíram para a eleição de Jair Bolsonaro, assim como a ‘negociação’ de propostas com base no oferecimento de cargos ou mesmo de emendas parlamentares, é muito mais grave do que supostos abusos de direitos democráticos em defesa de direitos conquistados prestes a serem exterminados por um projeto de lei do Executivo”, prossegue a nota.

À reportagem, a ONG Nossas informou que sua plataforma de pressão “possui mecanismos de segurança constantemente revisados que visam coibir ativamente sistemas de automatização de disparos de e-mails desenvolvidos por terceiros para fraudar suas ferramentas de pressão”.

“Como toda ferramenta tecnológica, ele não está imune a esse tipo de atuação criminosa. No entanto, as barreiras de proteção da plataforma atuam em diferentes níveis, pois as estratégias de automação que podem ser tentadas por atores mal-intencionados são diversas”, afirma a entidade.

A Gazeta do Povo questionou a ONG quanto à discrepância entre o baixo engajamento da entidade em seus canais digitais e o volume de disparos na casa dos milhões em suas campanhas. Segundo a rede Nossas, chegou-se aos números graças à divulgação em canais como redes sociais e e-mail, além de compartilhamento das campanhas por parceiros. “Salvo algum abuso criminoso por parte de terceiros no uso de nossas plataformas, as pressões não são artificiais. Elas partem de cidadãos – milhões de cidadãos – mobilizados por um país mais justo”, informou a ONG.


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