O toque plúmbeo que a mais deslavada alegria não consegue sublimar talvez seja consciência
Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo
Lloré, lloré, lloré.¿Y cómo pudo ser tan hermoso y tan triste?Agua y frío rubí, transparencia diabólica grababan en mi carne un tatuaje de luz. (Pere Gimferrer, Oda a Venecia Ante el Mar de los Teatros)
O poeta catalão Pere Gimferrer contempla a cidade do Adriático no poema Ode a Veneza Diante do Mar de Teatros. O turista fotografa e o casal romântico se beija. O poeta, claro, não conversa com o Instagram, ele lança sua pena ao horizonte mais denso. Para o autor, o mar tem sua mecânica como o amor, seus símbolos. Ao continuar sua viagem em versos, ele destaca que uma gota de chumbo ferve no seu coração (una gota de plomo hierve en mi corazón). O poema é forte e denso. Talvez seja a inteligência ou a idade (ainda que Gimferrer fosse novo ao escrever isso). A consciência nos torna covardes, pensava o príncipe Hamlet. Eu acho que ela nos torna prudentes no entusiasmo. Adesão absoluta à euforia de réveillon parece necessitar de muito colágeno. Para os outros, sempre um “pesinho”, uma “gota de chumbo”, a desconfiança de que a novidade é uma bruma que torna indistinto o solo e confere beleza de Monet à paisagem.
Não fiz uma análise dos densos versos citados. Na verdade, pincei uma frase solta e dei a ela um rumo meu. Confesso, de forma consciente, que procedi a algo que quase todos fazemos ao ler outras pessoas: um recorte. Tenho refletido muito sobre a “gota de chumbo”. Usando um adjetivo antigo derivado do metal: o toque plúmbeo que a mais deslavada alegria não consegue sublimar. Não é melancolia ou confissão de tristeza estrutural. Talvez seja consciência, mecanismo de defesa, sei lá. Admiro quem se entrega ao momento de forma plena. Fico impressionado com toda pessoa que, ao escutar uma música, ver um quadro, namorar ou aproveitar uma comida especial sai da medida do tempo e vive a comunhão com o objeto de prazer. Entendam-me: sinto imenso prazer nos pequenos e grandes momentos. Lembro-me de jantares, paisagens, pessoas, beijos, textos, melodias e delícias imensos. Tenho uma vida dominantemente feliz e com momentos paradisíacos de quando em vez. Porém, sem nunca ter sido atacado pelo mal grave da depressão, uma gotinha de chumbo foi sempre presente.
Lendo Clarice Lispector, percebi que ela, com mais talento, tinha uma consciência de si que a impedia da dissolução no aqui e agora que parecia tomar a todos. No caso dela, de forma muito mais forte, parecia que observava a vida e as pessoas de um camarote um pouco distante. Se, eventualmente, ela sofreu com a realidade psíquica de ser Clarice, nós ganhamos a felicidade de ler aquilo que a percepção dela proporcionou. Benefício ambíguo: Beethoven sofreu muito com a surdez; os ouvintes ganharam as mais sublimes páginas de uma mente que passou a ouvir tudo à medida que deixava de ser tocado pelo barulho do mundo. O chumbo dele, alquimicamente, foi transmutado em ouro para nós.
Você sente isso, querida leitora e estimado leitor? Estoura o champanhe na virada do ano-novo, alegra-se com a festa (ou… alegrava-se antes da pandemia) e se entrega por completo ao anelo coletivo de bem-estar e de votos esperançosos que o calendário em câmbio proporciona? Ou sorri, canta, bebe e come com um discretíssimo pé atrás, consciente de que já viveu muitos outros inícios, bailes de debutantes, esperanças em botão que mal atingem a festa de reis? Para mim a vida sempre se situou entre dois extremos da confiança em si: a exaltação exuberante de Song of Myself (Walt Whitman) e The Waste Land (T. S. Eliot). Nunca desci ao vale inteiramente cético e cinzento da consciência de Eliot e jamais flanei com Whitman pelas florestas virgens da América. Jamais incorporei homem oco (outro verso de Eliot) que testemunha o encerrar do mundo com um suspiro melancólico.
Pessoalmente, sempre achei pesadas e desagradáveis as pessoas negativas por escolha, críticas em excesso, profetas e profetisas acres. Da mesma forma, os entusiastas plenos da vida como uma aurora boreal coruscante conseguem me cansar, igualmente.
Como estou embebido em poetas hoje, penso em outro, Miguel Vázquez Montalbán, que condenava o astronauta que contemplava o céu para evitar a visão dos ratos (“inútil cosmonauta el que contempla estrellas para no ver las ratas”). Talvez seja esse jogo que extraio a fórceps de grandes poetas. Quem vive com ratos tende a um mundo complicado. As pessoas com cabeça permanente nas estrelas podem perder um pouco da humanidade que disputa comida com os roedores.
E assim, quando alguém entra no trabalho ao alvorecer da segunda, gritando um bom-dia de acordar qualquer defunto, sinto um estranhamento similar ao que se surge como um cortejo fúnebre, morto-vivo de um projeto biográfico em frangalhos. Um coração e uma gota de chumbo parecem descrever outra posição. Um coração para sentir a esperança de que tudo pode ser diferente; o metal denso para que nossos pés continuem tocando a terra e lembrando que nós, sonhadores e esperançosos, faremos companhia aos ratos um dia. E você, queridíssima leitora e estimadíssimo leitor, quanto de chumbo seu coração carrega?
É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, AUTOR DE ‘O DILEMA DO PORCO-ESPINHO’, ENTRE OUTROS