Artigo
Por
Fernando Razente – Gazeta do Povo

| Foto: Tumisu/Pixabay

“É necessário bom senso para saber quando um preconceito deve ou não ser abandonado.” Theodore Dalrymple, médico psiquiatra e escritor britânico.

Muitos debates terminam mal (ou nunca terminam), porque partem de premissas obscuras, com termos sem definições claras entre aqueles que discutem. Por isso, o primeiro passo para qualquer discussão saudável no âmbito da disputa retórica é a definição dos conceitos para, em seguida, desenvolver a argumentação.

O que é um conceito e qual a sua importância? José D’Assunção Barros, professor de Teoria e Metodologia, escreve que “[…] os conceitos correspondem a noções gerais que definem classes de objetos e de fenômenos dados ou construídos, e que sintetizam o aspecto essencial ou as características existentes entre estes objetos.”

Ou seja, conceito é uma ideia ou noção construída por nós para expressar alguma realidade; é uma forma de representação que ocorre através da abstração de um aspecto. E qual a finalidade do conceito? Ora, ele deve ser entendido como uma formulação abstrata e geral, ou ao menos passível de generalização, que o indivíduo pensante utiliza para tornar alguma coisa inteligível em seus aspectos essenciais, para si mesmo e para outros.

Portanto, para discutirmos nosso assunto de hoje, iremos primeiro precisar definir esse assunto. Meu assunto hoje é o preconceito. Esse termo tem sofrido nas mãos de muitos acadêmicos, à semelhança de certo homem que descia de Jerusalém para Jericó, e caiu em mãos de salteadores, que depois de tudo lhe roubarem e causarem ferimentos, se foram, deixando-o semimorto. Este é o estado dessa palavra em nossos dias: tão mal compreendida, interpretada, usada e aplicada, que já nem parece mais o que era quando veio a existir. Mas é preciso resgatá-la.

Segundo alguns gramáticos e linguistas, o sentido pejorativo normalmente atribuído ao preconceito não aparece em sua origem etimológica nem em português nem em francês. A noção que temos hoje de preconceito é, na verdade, imbuída de ressignificações políticas e ideológicas que, na falta de um termo mais adequado, abusaram do termo em questão. Precisamos voltar à definição original do termo.

Resumidamente, basta que entendamos que a etimologia fornecida é baseada na análise de alguns dicionários que revelam a relação dos sentidos dessa palavra da língua portuguesa normatizada com outras duas palavras de uma língua oficial de outro espaço de enunciação, o francês.

Enquanto que na língua portuguesa, os sentidos ficam condensados em uma única palavra, o preconceito em francês se divide em duas palavras de radicais diferentes: préjugé e préconçu. As duas dão o sentido, ou de um julgamento crítico ou o sentido de um julgamento antecipado, à palavra preconceito que usamos em português através da etimologia francesa. O interessante é que nas duas há uma falta de sentido pejorativo. Todavia, ao sairmos do lugar da língua normatizada pelos dicionários e passamos para o seu funcionamento em um texto popular, como o “A evolução do povo Brasileiro” de Oliveira Viana, observamos que logo as duas primeiras reescrituras de preconceito atribuem à palavra o sentido pejorativo por ser reescrita por erro. “Vemos, então, a oposição entre o discurso do senso comum e da ciência mas, nesse caso, a reescritura erro atribui o sentido pejorativo que faltava antes”, comenta a Professora Carolina de Paula Machado, em seu artigo “Os sentidos da palavra preconceito na produção do conhecimento das ciências sociais”.

Atualmente, preconceito, na concepção popular, é necessariamente sinônimo de erro e até mesmo de imoralidade. Muitos associam o preconceito com atos de machismo, homofobia, cristofobia, entre outros, mas poucos percebem que o termo se trata de uma expressão das nossas limitações cognitivas e que estabelece a forma da construção do conhecimento em qualquer área.O preconceito, corretamente compreendido, é fundamental no nosso processo cognitivo, e todos nós fazemos uso dele no processo de aprendizagem.

O processo de conhecimento do ser humano é mediado, conforme defendeu Abraham Kuyper em seu Sabedoria e Prodígios. Por isso, nossa investigação do mundo é processual e cheia de falhas, de testes, de hipóteses e ilações; e o preconceito está presente nesses processos, como apreensões prévias da natureza da realidade do nosso mundo. Não somente está presente no âmbito acadêmico e intelectual, mas nossa sobrevivência no dia a dia desenvolve-se sobre e através de muitas coisas não compreendidas por nós e muitas que nem nos damos conta que acreditamos, o que chamamos de pressuposições ou preconceitos.

Portanto, precisamos do preconceito para muitas coisas. É impossível não ter preconceito, e é benéfico tê-lo. Contudo, lembro que é importante compreendê-lo apenas como um degrau rumo ao conhecimento objetivo e claro da realidade. Minha pretensão não é fazer uma apologia da continuidade do preconceito, devemos avançar rumo a conceitualização precisa das coisas.

O mito da caverna tecnológica
Eu apenas queria chamar a atenção – a partir de uma abordagem etimológica do assunto – para a arrogância daqueles que se dizem imunes de preconceitos ou daqueles que acreditam que suas conceitualizações bem elaboradas e acadêmicas são sinônimos de realidade objetiva; aqueles que estão sempre prontos a combater as “ideias pré-estabelecidas”, mas nem percebem que estão cheios delas; aqueles que pretendem se colocar num lugar incomum, não-convencional, mas que apenas fazem o que é de pior na convencionalidade pública e popular: compreender preconceito como erro.

“O preconceito”, disse alguém, “é como nosso tutor quando somos jovens intelectualmente”. Não podemos caminhar uma jornada intelectual sem eles, nem desprezá-los com presunção; mas, também não devemos usá-los como uma forma de nos distanciarmos da maturidade do pensamento.

Fernando Razende é pesquisador em História, atuante com rádio/comunicação, assessoria e mídia; escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.

Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/o-preconceito-como-precondicao-do-aprendizado/
Copyright © 2021, Gazeta do Povo. Todos os direitos reservados.

Loading

By valeon

167 thoughts on “O preconceito como precondição do aprendizado”
  1. I have been browsing online more than 3 hours today, yet I never found any interesting article
    like yours. It is pretty worth enough for me.
    In my opinion, if all webmasters and bloggers made good content
    as you did, the net will be a lot more useful than ever before.

    Visit my homepage: hemp farming

  2. I am in fact grateful to the owner of this web site who has shared this enormous
    article at at this place.

  3. Hi! Someone in my Myspace group shared this site with
    us so I came to look it over. I’m definitely loving the information. I’m book-marking and will
    be tweeting this to my followers! Fantastic blog and fantastic style and
    design.

    My blog post; seeds require

  4. Thanks a lot for sharing this with all people you actually
    realize what you’re talking approximately! Bookmarked.

    Kindly additionally discuss with my site =). We can have a hyperlink alternate arrangement among us

    Feel free to surf to my web page; poor eating

  5. I am not sure where you are getting your information, but great topic.
    I needs to spend some time learning more or understanding more.

    Thanks for fantastic information I was looking for this information for my mission.

    My blog post :: facial skin care

  6. Attractive portion of content. I just stumbled upon your website and
    in accession capital to assert that I get in fact loved account your blog posts.
    Any way I will be subscribing for your feeds or even I
    achievement you get admission to consistently lose weight fast.

  7. Its like you read my mind! You seem to know so much about this,
    like you wrote the book in it or something. I think that you can do with some pics to drive
    the message home a bit, but instead of that, this is magnificent
    blog. A fantastic read. I’ll definitely be back.

    Also visit my homepage … basic skin care routine

  8. You actually revealed it superbly.how to write a diagnostic essay good thesis statement coursework writing help

  9. If you are going for best contents like me, only pay a visit this site daily because it gives quality contents, thanks

  10. You’re so cool! I don’t think I’ve read through anything like this
    before. So nice to discover another person with some original thoughts
    on this issue. Really.. thanks for starting this up.
    This website is something that’s needed on the internet, someone with a bit of originality!

  11. Good way of describing, and nice piece of writing to
    get facts on the topic of my presentation focus, which i am going to deliver in college.

Comments are closed.