Retrocessos
Por
Tiago Cordeiro, especial para a Gazeta do Povo

17-03-17 – Coletiva de tres anos da Operacao Lava Jato

Coletiva de três anos da Operação Lava Jato, em março de 2017, com a presença de integrantes da força-tarefa do MPF.| Foto: Gazeta do Povo/Arquivo

Para se consolidar como a maior operação de combate à corrupção da história do Brasil, a Lava Jato contou não só com o trabalho de dezenas de profissionais, como também com uma série de ferramentas importantes.  Sem elas, não seria possível organizar as investigações, preservar o sigilo necessário antes de operações, nem conseguir novos dados a partir dos depoimentos dos investigados.

Nos últimos meses, enquanto a Lava Jato começava a sofrer uma série de golpes, seja em sua estrutura, seja com o questionamento judicial de condenações, também foram ameaçadas, ou simplesmente eliminadas, várias dessas ferramentas. Isso torna mais difícil repetir no futuro uma operação tão audaciosa e bem-sucedida em identificar e conseguir a prisão de políticos e empresários de alto escalão.

Confira agora o que aconteceu com seis dessas ferramentas que já foram tão úteis para o combate à corrupção.

  1. Força-tarefa
    Situação: As forças-tarefas da Lava Jato, tanto a da Polícia Federal quanto do Ministério Público Federal (MPF), não existem mais. No caso, do MPF, as investigações foram deslocadas para o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) – que tem menos mão de obra de trabalho e mais atribuições. Além disso, o atual comando do MPF é contra o modelo de forças-tarefas. O modelo, portanto, não está formalmente extinto. Mas não deve ser usado em outras investigações de corrupção ao menos durante a gestão do atual procurador-geral da República, Augusto Aras.

Por que foi importante: As forças-tarefas permitiam formar equipes multidisciplinares com dedicação exclusiva. “A força-tarefa garantia uma dinâmica colaborativa de trabalho, que permitiu que Ministério Público, Polícia Federal e Receita Federal atuassem juntos”, explica o procurador de justiça Roberto Livianu, membro do Ministério Público de São Paulo desde 1992 e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção. “Outro diferencial importante foi o suporte da cúpula. Se você tem pessoas focadas, com dedicação exclusiva e apoio dos superiores, os resultados aparecem”. No caso do Gaeco, não existe mais esse trabalho conjunto. Seus integrantes atuam a partir do local onde ficam sediados e se dividem para investigar diferentes casos.

  1. Prisão em segunda instância
    Situação: Não existe mais. O Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento realizado em novembro de 2019, decidiu declarar a inconstitucionalidade da prisão após condenação em segunda instância – revertendo um entendimento fixado em 2016. Desde então, para que alguém seja preso, é necessário estarem esgotados os recursos em todas as instâncias judiciais – que podem ser até quatro. Foi com base nesse entendimento que o ex-presidente Lula, condenado até então em duas instâncias na Lava Jato, foi libertado em 2019.

Na Câmara dos Deputados, tramita a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 199/19, que permite a prisão de pessoas condenadas após o julgamento em segunda instância. Mas a tendência é que essa proposta não seja votada em breve. O novo presidente da comissão especial que avalia a PEC, o deputado federal Aliel Machado (PSB-PR), declarou recentemente à Gazeta do Povo que a proposta precisa de apoio popular para chegar ao plenário, que atualmente o foco do país está na CPI da Covid e na própria pandemia.

Por que foi importante: “Não ter prisão após condenação em segundo grau desestimula as colaborações premiadas, porque o investigado deixa de temer a cadeia”, sintetiza Roberto Livianu.

  1. Condução coercitiva
    Situação: Não existe mais. Em junho de 2018, o STF decidiu, por seis votos a cinco, que é inconstitucional o uso de condução coercitiva de investigados ou réus para fins de interrogatório. A condução coercitiva era um instrumento presente no processo penal brasileiro há décadas.

Por que foi importante: A condução coercitiva foi mais um instrumento que favoreceu a Lava Jato, pois políticos e empresários passaram a temer a investigação. Com esse instrumento, os suspeitos que eram alvo de novas fases da investigação não tinham tempo de “ensaiar” respostas com seus advogados ou de “combiná-las” com outros suspeitos. Eles eram obrigados a depor na hora estabelecida pela Lava Jato. Isso ajudou na investigação.

A Lava Jato fez com que a condução coercitiva se disseminasse como ferramenta de investigação. Segundo levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, em 2013, um ano antes do início da Lava Jato, o número de conduções coercitivas no Brasil havia sido de 564. Em 2016, dois anos após a deflagração da Lava Jato, saltou para 2.278 em todo o país. O sucesso da operação havia levado outras forças policiais do país a adotar a prática.

  1. Julgamento de caixa 2 eleitoral na Justiça comum
    Situação: Não existe mais. Em março de 2019, por 6 votos a 5, o STF decidiu que casos de caixa 2 eleitoral são de responsabilidade da Justiça Eleitoral. A Lava Jato e integrantes do MP como a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge interpretavam que o caixa 2 poderia caracterizar outros crimes comuns, como corrupção e lavagem de dinheiro.

Por que foi importante: A Justiça Eleitoral não tem estrutura para julgar casos de grande complexidade, além de ser formada por juízes temporários e de sofrer pressão política constante. Portanto, a Justiça comum poderia julgar esses casos de forma mais rápida. E, no caso da Lava Jato, a maior parte dos políticos investigados pela Lava Jato foi acusado de incorrer nos crimes de caixa 2, corrupção e lavagem de dinheiro.

  1. Delações premiadas
    Situação: Ameaçada. Em 2019, o grupo de trabalho na Câmara dos Deputados que avaliava mudanças na legislação penal aprovou novas regras para os acordos de colaboração premiados. O projeto ainda não foi aprovado de forma definitiva, mas há pressão no Congresso para dificultar as delações. E, nos últimos cinco anos, diferentes projetos foram apresentados no Congresso para reduzir a abrangência das colaborações premiadas. Além disso, a colaboração premiada também corre riscos no Judiciário. Em 2017, por exemplo, o ministro do STF Gilmar Mendes criticou os acordos de colaboração e disse que há uma “insuficiência de controle” nas homologações das delações.

Por que é importante: “A colaboração premiada existe desde 1986, e foi finalmente regulamentada em 2013, com a Lei 12.850. Sem ela, não teríamos o nível de amplitude que a Lava Jato alcançou”, diz o procurador Roberto Livianu. A Lava Jato realizou 278 acordos de colaboração premiada e de leniência (a delação das empresas), que alçaram o compromisso, dos condenados, de devolver R$ 22 bilhões aos cofres públicos. Sem esses acordos, que levam a novas informações, não seria possível ampliar o leque de investigados, na direção dos mandantes dos crimes investigados ao longo da operação.

  1. Foro privilegiado menos amplo
    Situação: Ameaçado. Em 2018, o STF decidiu que políticos e autoridades públicas só têm o direito ao foro privilegiado se os crimes a que são acusados ocorreu durante o mandato e se estão relacionados ao exercício do cargo que ele ocupa. Essa medida que tende a acelerar investigações e julgamentos. Mas ministros do próprio STF já tem decisões contrárias a esse entendimento – o que ameaça a sua efetividade, especialmente quando envolve políticos poderosos com acesso ao STF.

Em 2020, por exemplo, o ministro Dias Toffoli, como plantonista do Supremo, suspendeu investigações da Lava Jato de São Paulo contra o senador José Serra (PSDB) por suposto caixa 2 eleitoral e lavagem de dinheiro de obras do Rodoanel da época em que o tucano era governador paulista. A decisão foi confirmada posteriormente por Gilmar Mendes, o responsável pelo caso. Os dois ministros do STF entenderam que, por ser senador, somente o Supremo poderia autorizar investigação contra Serra, embora o caso da Lava Jato não tratasse da época em que ele governou o estado.

Além disso, há ameaças vindas do atual comando da Polícia Federal (PF). Recentemente, a PF manifestou interesse em centralizar na cúpula as investigações de autoridades com foro privilegiado. Isso tende a “congestionar” investigações contra políticos e autoridades que hoje são descentralizadas. E, se isso ocorrer, a tendência é que essas investigações se tornem mais lentas.

Por que é importante: A restrição ao foro privilegiado permitiu que políticos e autoridades passassem a ser investigados, processados e eventualmente condenados de forma mais rápida. Isso porque, antes, era necessária a análise de tribunais superiores (STF e STJ), que costumam ser mais lentos nesse tipo de processo. Portanto, a restrição do foro privilegiado beneficia a sociedade como um todo, pois passa a sensação de que não há impunidade. Além disso, os casos correm menos risco de prescrição.

“Um país em que mais de 55 mil pessoas têm direito a foro privilegiado tem um sério problema de credibilidade no combate à corrupção”, diz o procurador Roberto Livianu. “Estamos vivendo o momento crítico de combate à corrupção. Há uma série de movimentos na direção de garantir a impunidade por lei.”


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