Geopolítica cognitiva

Por
Daniel Lopez – Gazeta do Povo

“No princípio era o verbo”. Assim se inicia o Evangelho de João, trazendo a ideia de que a linguagem é a base de tudo que há. Pensando com calma, percebemos que nossas decisões e o entendimento que temos sobre nós mesmos e sobre o mundo são permeados pela palavra. Dessa forma, entendemos o poder da linguagem sobre a constituição da personalidade, assim como para a organização da sociedade e o exercício do poder.

Há séculos os gregos perceberam essa força, e criaram métodos para usar o verbo com o fim do convencimento e da persuasão. Essa técnica recebeu o nome de retórica. Desde então, muitos tem se dedicado ao uso da palavra como instrumento de domínio das massas. Ignorar essa realidade e desconhecer tal realidade significa estar sujeito a ser subjugado.

O problema é que as pessoas, em geral, superestimam sua habilidade de não serem persuadidas. Julgam que, independentemente de estudo ou treinamento especial, seriam capazes de resistir a uma argumentação bem executada. Este é o chamado efeito Dunning-Kruger. Este conceito seria mais ou menos assim: quanto menos uma pessoa sabe sobre um determinado assunto, mais ela acha que sabe. Imagine esse efeito funcionando sobre a própria existência da pessoa, que julga pensar por conta própria, fazer suas escolhas com autonomia e decidir seu próprio futuro. Significa que, quanto mais ela se achar livre, menos livre seria.

George Orwell entendeu muito bem esse princípio, e o descreveu brilhantemente nas obras “Revolução dos Bichos” e “1984”. Ali temos uma descrição detalhada das inúmeras técnicas de persuasão por meio da linguagem. Um leitor que tenha vivido nos tempos sombrios da Alemanha de Hitler ou da União Soviética de Stalin veria no texto de Orwell uma fiel representação de sua experiência. Porém, um leitor ocidental contemporâneo poderia encontrar dificuldade em estabelecer uma correlação entre a leitura do 1984 e sua vivência pessoal. Julgaria tudo como mera ficção ou exercício especulativo. Pelo menos até 2019. O ano de 2020 colocou para o Ocidente, um pouco mais acostumado à democracia e à liberdade, uma excelente oportunidade de reler a obra orwelliana. Quarentenas, isolamentos, fechamento do comércio e a enorme invasão estatal na vida privada tornaram a leitura de uma atualidade visceral.

A história narrada no livro se passa na Inglaterra, e foram exatamente os ingleses que nos ofereceram o mais recente exemplo de como a linguagem poder ser usada da forma mais covarde possível. Seguindo os conselhos de seu “especialista em alimentação saudável”, o primeiro-ministro Boris Johnson cogitou aplicar a aparentemente nobre ideia de ajudar os britânicos a melhorarem seus padrões alimentícios, por meio do aumento de impostos sobre dois “bichos-papões” da saúde: o sal e o açúcar. A reação dos conservadores foi incisiva, o que levou o premier a bolar um novo plano. Em vez de aumentar os impostos, a ideia seria oferecer um “presente”. O governo concederia recompensas para as famílias que comprassem alimentos mais saudáveis. Mas como o Estado controlaria isso? O monitoramento dos gastos nos supermercados seria feito por meio de um aplicativo. Ganharia “pontos” quem comprasse mais frutas, vegetais e refeições menos calóricas, praticasse exercícios físicos ou fosse para a escola a pé. A pontuação poderia ser trocada por uma série de benefícios, como descontos ou ingressos gratuitos para eventos. Ou seja, eles apresentaram primeiro uma ideia muito ruim (aumento de impostos), de forma que a segunda ideia (ainda pior) pudesse ser vista como uma opção interessante e amistosa.

É claro que para o “avarento cognitivo”, seria impensável imaginar que o governo estaria com segundas intenções num projeto “tão nobre” como este. O único objetivo seria combater a obesidade crescente entre ingleses após a pandemia, e não monitorar os comportamentos de consumo dos cidadãos e utilizar essa informação em desfavor do indivíduo em momento oportuno. E quando falo em avareza cognitiva, estou me referindo ao termo criado, exatamente em 1984, por Susan Fiske e Shelley Taylor, que teve considerável influência na teoria da cognição social. O “avarento cognitivo” seria aquele que tende a pensar e resolver problemas da forma sempre mais simples e menos exigente, evitando soluções elaboradas. Enquanto o avarento evita gastar dinheiro, o avarento cognitivo evita fazer esforço mental. Eles não pensam racionalmente ou com a devida atenção, preferindo dispor dos chamados “atalhos cognitivos” para tirar conclusões e formar opiniões.

O problema é que, em geral, quem não sabe nada sobre um assunto não tem nenhuma dúvida sobre ele. Isso pode ser usado para o bem ou para o mal. Sócrates percebeu, ao se debruçar sobre um tema, que não possuía conhecimento suficiente sobre ele. Por isso, procurou os maiores especialistas de sua época. A surpresa foi que, ao conversar com os maiores peritos sobre ética, leis, poesia e política, concluiu que os experts não conheciam realmente os temas que julgavam dominar, e desconheciam sua própria ignorância. Foi por esta razão que o importante Oráculo de Delfos declarou, à época, que Sócrates era o homem mais sábio de toda a Grécia. O filósofo poderia ter respondido: “mas não sei nada. A única coisa que sei é que nada sei”. A sacerdotisa de Apolo poderia responder: “exatamente por isso você é o mais sábio. Foi o único que reconheceu a própria ignorância”.

Sócrates estava imune ao efeito Dunning-Kruger e à avareza cognitiva. Infelizmente, poucos hoje estão dispostos a pensar um pouco mais e reconhecer suas próprias limitações. Mas o fato de o livro “1984” estar sendo cada vez mais vendido, depois de tantos anos de sua publicação, pode nos dar um fio de esperança de que, no final, Orwell vencerá Marx.


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