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Maria Clara Vieira – Gazeta do Povo

Walter Elias Disney, o animador que revolucionou o cinema| Foto: Reprodução

“Temos que assombrar os gringos”, teria dito Paulo Benjamin de Oliveira, um dos maiores nomes da história do samba, naquela que seria sua última participação na escola que ajudara a fundar. Batizada em homenagem à estrada que liga os bairros de Madureira e Oswaldo Cruz, na Zona Norte do Rio de Janeiro, a quadra – que também emprestou o apelido ao sambista – foi palco do encontro emblemático que se tornou símbolo da “política de boa vizinhança” praticada pelo governo de Franklin Roosevelt nos Estados Unidos.

Na tarde do dia 24 de agosto de 1941, produtor cinematográfico Walter Elias Disney deixava o Copacabana Palace para visitar a quadra da Portela, onde seria fotografado ao lado de Angenor de Oliveira, o Cartola, e do próprio Paulo da Portela, o anfitrião do evento, que faria uma turnê nas terras do Mickey para estreitar as relações entre os países. Pouco tempo depois, de chapéu de gafieira e “jeitinho brasileiro” – hoje, alvo de críticas e de avisos politicamente corretos – nascia o Zé Carioca.

O aniversário de 80 anos da visita de Walt Disney à escola de samba, em meio à turnê de lançamento do sucesso “Fantasia”, foi tema de uma reportagem veiculada na última terça-feira (24), pelo RJTV, jornal matinal da Rede Globo dedicado à Região Metropolitana do Rio. Com entrevistas com pesquisadores e com o atual presidente da agremiação, a produção levou o tema aos assuntos mais comentados do Twitter, e não passou incólume à era do cancelamento. Não foram poucos os internautas que acusaram o animador de racismo, machismo e até antissemitismo.

A celeuma, no fundo, não é nova: em 2014, por ocasião do lançamento de “Walt nos Bastidores de Mary Poppins”, a atriz Meryl Streep acendeu o debate ao atribuir a Disney a “tríade” de adjetivos que vêm à baila sempre que o nome do diretor e animador volta às notícias. Meio século após sua morte, sabe-se que, de fato, não era fácil conviver com Walt, sua personalidade geniosa, moldada em pleno pós-Guerra. Ocorre que, como de praxe, a história contém mais nuances do que a imaginação canceladora consegue alcançar.

Racista?
Walt Disney vivia o auge de sua carreira quando os movimentos pelos direitos civis, liderados pelo pastor e ativista Martin Luther King, começaram a tomar corpo nos Estados Unidos, de modo que é inegável que algumas de suas primeiras obras refletem um imaginário marcado pela segregação racial. O filme “A Canção do Sul” é o exemplo mais representativo dos conflitos da época: alvo de críticas desde seu lançamento em 1946, o livro sequer está presente no catálogo do serviço de streaming da Disney.

Em seu “Walt Disney: o Triunfo da Imaginação Americana”, o biógrafo Neal Gabler registra que o filme causou polêmica cedo. “Muitos consideraram abominável a ideia de tio Remus [o protagonista] servindo alegremente uma família branca feliz enquanto ele próprio vivia em uma palhoça”, escreve Gabler. Na ocasião, o ativista Walter White, da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (em inglês: National Association for the Advancement of Colored People; NAACP), disse que a obra perpetuava a ideia de “uma relação idílica entre senhor e escravo, o que é uma distorção dos fatos”.

Walt Disney, contudo, gostou do filme – baseado em histórias afro-americanas populares que se tornariam uma coletânea em 1955 – e bateu o pé. Concordou, contudo, em rever os termos utilizados e desenvolveu uma grande amizade com o ator James Baskett, intérprete de tio Remus que se tornaria o primeiro ator negro a receber um Oscar Honorário, precisamente por “A Canção do Sul”. Gabler registra que Disney fez intensa campanha pelo prêmio, dizendo que Baskett construiu o personagem sozinho, e, meses depois da morte do ator, recebeu de sua esposa um telegrama agradecendo por ter sido “um amigo de fato, e (nós) certamente o somos na necessidade”.

Antissemita?
A pecha de antissemita é das mais complexas – e injustas – atribuídas ao criador do Mickey. Para entender este rótulo, é importante voltar ao início dos anos 1940, quando Disney, em uma de suas fases mais rabugentas e autocráticas (ele fora conhecido por décadas como um líder afável e generoso), convencido de que era um chefe exemplar, entrou em conflito com os sindicalistas da indústria cinematográfica que lideraram uma greve de animadores.

A “mágoa” com os grevistas – alguns deles, homens de confiança do estúdio – acabou por aflorar sua aversão ao comunismo, que começava a ganhar espaço no debate público. O sentimento levaria Disney a aderir à Motion Picture Alliance for the Preservation of American Ideals (algo como Aliança Cinematográfica para a Preservação dos Ideais Americanos, em tradução livre), organização declaradamente antissemita e anticomunista, evitada por vários líderes do ramo.

Art Babbit, um líder grevista que participou da animação de “Branca de Neve”, também acusava o ex-chefe de ser admirador de Adolf Hitler e Benito Mussolini, por ter recebido a cineasta alemã Leni Riefenstahl, que dirigira propagandas nazistas, no estúdio.

Ocorre que Disney nunca declarou apoio ao nazismo e, se algo pode ser dito contra o animador, é que era, nas palavras do biógrafo, “um tanto ingênuo politicamente” e avesso a controvérsias. Não por acaso, quando a guerra começou para os Estados Unidos, chegou a contribuir com grupos mais à esquerda e enviar suas “sinceras saudações ao valente povo da União Soviética”, ainda que sem nunca deixar de assumir seus ideais republicanos.

A respeito de seu suposto antissemitismo, vale ressaltar que Disney fez doações vultosas para o Asilo de Órfãos Hebraicos da Cidade de Nova York, para a faculdade judia Yeshiva College e para o Lar Judaico para Idosos. Chegou inclusive a ser eleito o “Homem do Ano” pelo Beverly Hills Lodge dos B’nai B’rith, a mais antiga sociedade judaica do mundo, em 1955. Não por acaso, costumava brincar dizendo que havia “mais judeus nos estúdios Disney do que no Livro do Levítico”.

Em resposta à crítica de Meryl Streep, o escritor judeu Douglas Brode, autor de obras sobre o multiculturalismo nas produções da Disney, disse que as falas da atriz “constituem a repetição de um boato cruel que não tem base em nada que possa ser considerado um fato”.

Machista?
O segundo epíteto herdado dos grevistas de 1941 é baseado em uma história divulgada pelo animador Ward Kimball, que dizia que Walt “não confiava em mulheres ou gatos”, e no fato de o diretor, ainda na década de 1930, ter escrito uma carta afirmando que meninas não participavam dos trabalhos criativos de seus desenhos. Ocorre que a exclusão de mulheres de determinadas etapas do processo era uma prática comum ao mercado de animação. Na Disney, entretanto, muitas trabalhavam no desenvolvimento das histórias.

Ainda na época da greve, o próprio Walt disse à equipe responsável por “Dumbo” que se “uma mulher também pode fazer o trabalho, ela vale tanto quanto um homem”. Já no ano seguinte, Retta Scott se tornaria a primeira animadora de “Bambi”. Quase duas décadas depois, com sucessos como “Cinderella” e “A Bela Adormecida” no currículo, Disney escreveria, em 1959: “As mulheres são as melhores juízas de tudo o que fazemos. Seu gosto é muito importante. Elas são as frequentadoras do cinema, são elas que arrastam os homens para dentro. Se as mulheres gostam, que se danem os homens”.

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