Afonso Benites – EL PAÍS

“Democracia é isso: Executivo, Legislativo e Judiciário trabalhando juntos em favor do povo e todos respeitando a Constituição”, escreveu o presidente Jair Bolsonaro em sua famigerada Declaração à nação, dois dias após incitar seus apoiadores contra o Supremo Tribunal Federal (STF). O recente republicanismo do presidente será testado nas próximas semanas, pois, na avaliação dos ministros do STF, dois dos seus movimentos institucionais mais recentes não respeitaram a Constituição. Bolsonaro caminha para sua primeira derrota judicial no tribunal após atacar a corte em uma manifestação antidemocrática em 7 de setembro —e recuar depois. Nos próximos dias, a ministra Rosa Weber deve se decidir sobre seis ações que pedem a declaração de inconstitucionalidade de uma medida provisória assinada pelo presidente. Ela tem como objetivo dificultar a remoção de fake news e conteúdos com discursos de ódio em redes sociais. Além disso, seu decreto de armas, que permitiu uma ampliação do porte de armamento pelos cidadãos, começa a ser julgado em plenário virtual nesta semana, e também não tem vida fácil na corte

Augusto Aras e Jair Bolsonaro em abril de 2020.© UESLEI MARCELINO (Reuters) Augusto Aras e Jair Bolsonaro em abril de 2020.

A alteração no Marco Civil da Internet foi publicada no dia 6 de setembro, na véspera do ato radical promovido pelo presidente que pedia o fechamento do STF. Naquela ocasião, em meio a um embate com o Judiciário, Bolsonaro pretendia beneficiar seus apoiadores radicais que costumam divulgar desinformação na internet. A sinalização da iminente derrota nesse caso ficou nítida quando o procurador-geral da República, Augusto Aras, deu parecer contrário à MP, nesta segunda-feira.

Aras costuma se alinhar às pautas do presidente no Supremo. Neste caso, segundo fontes da Procuradoria Geral da República, o procurador-geral identificou uma batalha perdida e resolveu agir em sentido distinto do habitual, numa tentativa de demonstrar isenção aos pares, que têm lhe cobrado com certa frequência uma atuação mais incisiva na fiscalização dos atos do Governo. No parecer enviado à ministra Weber, o procurador alegou que havia um prazo reduzido para que as empresas que administram as redes sociais se adequassem às novas regras, o que poderia causar insegurança jurídica.

Aras defendeu que fosse concedida uma medida liminar para suspender a validade da MP até que o plenário da corte se manifeste sobre o tema. “Parece justificável, ao menos cautelarmente e enquanto não debatidas as inovações em ambiente legislativo, manterem-se as disposições que possibilitam a moderação dos provedores do modo como estabelecido na Lei do Marco Civil da Internet, sem as alterações promovidas pela MP 1.068/2021, prestigiando-se, dessa forma, a segurança jurídica, a fim de não se causar inadvertida perturbação nesse ambiente de intensa interação social”, disse o procurador no documento.

A MP de Bolsonaro veta, sob pena de multa, que empresas como Facebook, Twitter e Youtube retirem do ar conteúdos e perfis que violem seus termos de serviço, exceto por “justa causa”. O critério para remoção de conteúdo poderia estar relacionado com pedofilia, pornografia, incentivo ao terrorismo e ao tráfico de drogas, entre outros. O que a medida não prevê é a retirada de conteúdos falsos, discurso de ódio, incitação à violência ou assédio virtual. Na prática seria uma espécie de blindagem ao próprio Bolsonaro, que já teve vídeos removidos por disseminar o uso de medicamentos comprovadamente ineficazes no tratamento da covid-19. A medida evitaria, por exemplo, uma punição como dada a que recebeu seu aliado Donald Trump, que acabou banido do Facebook e do Twitter em janeiro deste ano, por incitar a invasão do Capitólio.

Para especialistas, a mudança legislativa neste momento é inapropriada, além de ser inconstitucional, porque medidas provisórias precisam respeitar os critérios de urgência e relevância, o que não ocorreu neste caso. O advogado Omar Kaminski, especialista em direito digital e gestor do Observatório do Marco Civil da Internet, diz que o ideal é que temas como esse sejam alvo de um amplo debate, seguindo os ritos normais de uma proposta legislativa, passando por audiências públicas e sendo analisados por comissões especializadas da Câmara e do Senado. “A MP mais parece um salvo-conduto para uma liberdade de expressão desmedida, sem freios e sem limites, inclusive para transmitir fake news ou criar realidades paralelas ou bolsões de novas correntes, de entendimentos jurídicos diversos dos atualmente vigentes, objetivando no mínimo uma desestruturação ou desconstrução normativa”, disse ao EL PAÍS.

A Coalizão Direitos na Rede, coletivo que reúne cerca de 50 entidades da sociedade civil e organizações acadêmicas que trabalham em defesa dos direitos digitais, também manifestou-se contrária à MP, por entender que ela dificulta o combate à desinformação e fere o princípio da livre iniciativa do setor privado. “Jair Bolsonaro frequentemente viola as políticas de conteúdo desses provedores de aplicações e conta com muita complacência das empresas, que permanecem inertes e praticamente não adotam medidas de moderação em relação aos seus conteúdos. Mesmo assim, decidiu intervir unilateralmente no funcionamento das redes sociais, atacando os princípios do Marco Civil da Internet”, ponderou a Coalizão em nota.

Sem debate com a sociedade

Até mesmo o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), uma entidade privada e multissetorial que estabelece diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da internet no país, demonstrou ser contrária à mudança na legislação da maneira que foi proposta pelo presidente. Em nota, o colegiado, que é formado por 21 pessoas, sendo nove representantes do Governo e 12 da sociedade civil, alertou que há um risco de se criar insegurança jurídica sobre o tema e de se congestionar o Judiciário com novas ações.

“Limitações excessivas à atuação dos provedores poderão ocasionar efeitos indesejados para a usabilidade geral da rede e para a proteção de usuários, além da inevitável sobrecarga ao já congestionado Poder Judiciário, que hoje já conta com mais de 80 milhões de ações em tramitação”, disse. O CGI.br defendeu o atual Marco Civil por entender que seu artigo 19 “tem por objetivo principal garantir o equilíbrio entre a atuação e responsabilização de usuários e provedores”. A nota do comitê foi elaborada nesta segunda-feira após uma reunião extraordinária do conselho. Nenhum dos 21 conselheiros, nem mesmo os com cargos no Governo federal, votou contra o documento.

A nota do CGI.br começou a ser gestada em maio, quando um grupo de trabalho foi montado para acompanhar potenciais mudanças no Marco Civil da Internet que já vinham sendo debatidas às escuras pelo Governo Bolsonaro. Desde então, o comitê tentou, sem sucesso, se reunir com representantes da secretaria de Direitos Autorais, a área responsável por este tema. “Por três meses houve esforços de nossa parte para dialogar, mas o Governo não quis e publicou essa MP sem interlocução prévia com o CGI”, disse a conselheira do órgão Bia Barbosa, que é representante do Terceiro Setor.

Internamente, de acordo com Barbosa, não há uma rejeição para que se mude o Marco Civil da Internet, desde que haja um amplo debate em que todos os setores sejam ouvidos. A construção dessa lei levou três anos só no Congresso Nacional. A da Lei Geral de Proteção de Dados, outra referência, foi discutida por dois anos dentro do Executivo e mais dois no Legislativo, sendo aprovada apenas em 2018. “Um tema como esse não pode ser atropelado por uma MP”, afirmou a conselheira.

O que tem ficado claro é que, na atual guerra contra a desinformação, o presidente está do lado das inverdades. Além dessa mudança no Marco Civil da Internet, Bolsonaro vetou no mês passado a punição à disseminação de fake news, prevista na lei que tipifica os crimes contra o Estado Democrático de Direito que foi aprovada pelo Congresso Nacional. ele argumenta defender a liberdade de expressão. O veto ainda será analisado pelos deputados e senadores. Não há uma data agendada para essa votação dos parlamentares.

Armas

Outro tema caro ao bolsonarismo que passa por análise no Supremo é o decreto de armas, que facilitou o comércio de armamentos e afrouxou a fiscalização. A tendência no tribunal é de que essa ordem presidencial também seja derrubada. Há sete ações sobre o tema e elas começam a ser julgadas no plenário virtual a partir do dia 17.

O indício, até o momento, é de que as reações dos poderes contra o presidente virão a galope. Além do Supremo, está cada vez mais claro no Congresso que suas pautas radicais não passarão. O que deve ser aprovado, ainda que com certa dificuldade, são suas pautas econômicas, como a reforma administrativa e alguns trechos da reforma tributária.

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