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Francisco Razzo – Gazeta do Povo
Urnas eletrônicas usadas no processo eleitoral.| Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo / Arquivo
Não há nada mais difícil para a vida de uma república do que dar aos desiguais plena participação política entre os iguais. Como ironizava George Orwell em A Revolução do Bichos: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”. Trata-se da implacável crítica ao regime da tirania dos porcos: o stalinismo. Afinal, o igualitarismo compulsório é um dos maiores atentados contra a natureza, não só dos bichos como a humana – o livro de Orwell é um fábula pra gente grande.
A propósito, a PEC da reforma eleitoral 2021 acaba de ser aprovada no Congresso. Alguns grupos comemoram como se ela representasse “a maior reforma eleitoral da história da democracia brasileira”. Obviamente, refiro-me a “temas sensíveis”, como cotas raciais e de gênero, financiamento de campanha e outros tantos tópicos de interesse republicano. Sensível mesmo é este tópico: para incentivar candidaturas de mulheres e negros, os votos a essas pessoas serão contados em dobro para fins de distribuição de recursos do fundo partidário.
Políticas identitárias têm fetiches por abstrações. “Negros” e “mulheres” são conceitos que forçam todo um processo social de igualação do não igual. Entre si, mulheres são substancialmente diferentes umas das outras. Entre negros isso não é diferente. Ou todos os negros e mulheres são iguais uns aos outros?
À primeira vista, a solução para incentivar mulheres e negros a participar da vida política parece atraente. A despeito da igualdade dos cidadãos parente a lei, o importante é saber tratar com justiça as desigualdades. Se não me engano, foi Aristóteles o autor do insight de que a justiça da polis consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Os especialistas devem encontrar boas razões para que desiguais sejam tratados em suas desigualdades e os iguais, em suas igualdades. Mas precisamos ter cautela com isso.
Por exemplo, sei que existe uma delicada distinção entre igualdades formais e igualdades sociais ou materiais. Na perspectiva da lei, todos são iguais; socialmente falando, há profundas desigualdades. Ora, não se pode querer corrigir desigualdades sociais destruindo a igualdade perante a lei. Não há república sem o princípio de isonomia. Até Aristóteles sabia disso. De fato, não se pode tratar pessoas como se fossem abstrações vazias. Perante a lei, todos são iguais. Na realidade substantiva que compõe o tecido social, todos são diferentes.
A lei deve assegurar mais do que igualdades formais. Se diante da lei somos iguais, diante uns dos outros não o somos. A lei deve amparar essas desigualdades sem destruir o princípio de igualdade. Como resolver esse impasse da vida em sociedade sem incorrer na destruição desse princípio fundamental? Políticas identitárias também têm fetiches por abstrações. “Negros” e “mulheres” são conceitos que forçam todo um processo social de igualação do não igual. Na prática, entre si mulheres são substancialmente diferentes umas das outras. Entre negros isso não é diferente. Ou todos os negros e mulheres são iguais uns aos outros? Só o são perante a lei.
Ser “mulher” ou ser “negro” como critério para incentivar participação política, na verdade, mascara o total desprezo pela realidade efetiva dos desiguais. Aqui não estamos mais no âmbito das desigualdades substantivas que merece amparo da lei. Se o raciocínio que orienta a compreensão do princípio da isonomia constitucional contempla igualmente os iguais e desigualmente as situações desiguais, isso não acontece quando negros e mulheres são reduzidos a meras abstrações para fins ideológicos.
Esse tipo de incentivo – “contar em dobro o voto dessas pessoas” –, no fundo, não só tende a destruir o princípio republicano de isonomia como despreza diferenças substantivas entre essas pessoas. Para ser mais preciso, essa diferenciação consiste em tratar a todos como cidadãos de segunda classe, que só participam da política quando incentivados por interesses de natureza não política.
A verdade é que cidadãos da república não deveriam escolher seus representantes políticos por afinidades identitárias (mulher votar em mulher; negro votar em negro), mas por afinidade de ideias. São as ideias que distinguem pessoas e fazem da república um espaço efetivamente democrático. Representação política e virtudes republicanas não têm a ver com a cor da pele e tampouco com o gênero. Prova disso é como alguns ideólogos da esquerda tratam mulheres e negros que não rezam pelo mesmo cardápio de suas ideologias. No fim, já não se pode mais distinguir homens de porcos.
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