‘Nos intervalos de seriados como Bonanza, acompanhávamos a saga de Urashima Taro. Não se lembra? Provavelmente, você é jovem. Procure a história da tartaruga que ele curou no Google’
Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo
A maioria das pessoas nascia e morria em um mesmo lugar no mundo antigo e medieval. Raros humanos teriam conhecido mais do que alguns quilômetros fora da sua casa. Viagens eram incomuns e penosas. São Bento escreveu contra monges que iam de um lugar a outro. Chamou-os por um adjetivo que é quase um xingamento: giróvagos. Os chamados “ciganos” eram atacados continuamente. Pessoas “respeitáveis” estavam sempre no mesmo lugar. Sua aldeia era segura. Todos eram estrangeiros fora dela. O que vinha de fora era um risco.
Exceções? Quando muito, havia comerciantes e um punhado de peregrinos em lugares sagrados como Santiago de Compostela. Conhecer terras distantes começa a crescer com os relatos de Marco Polo e suas incursões maravilhosas pela Ásia. As Cruzadas criaram rotas comerciais, religiosas e de horizontes novos. As grandes navegações da Idade Moderna alargaram tudo. Narrativas de riquezas da América estavam nas feiras. O resgate do imperador inca, Atahualpa, foi contado muitas vezes. Uma sala grande com ouro até o teto!
Avancemos ao século 18. A elite inglesa tinha um programa obrigatório para seus rebentos dourados. O aristocrata deveria fazer uma viagem pela Europa, especialmente em lugares marcados pela presença da cultura clássica e do Renascimento. Era o “grand tour”, um rito quase obrigatório, uma forma laica de peregrinação que incluía Veneza, Florença e Roma. Levavam tutores, por vezes eruditos, guias escritos sobre os lugares e inauguraram a forma contemporânea de turismo, palavra associada ao “tour” inglês. Não traziam fotos, claro. Os baús retornavam às ilhas britânicas com quadros, antiguidades e mapas comprados em lugares de reputação variada. A viagem daria base para conversas futuras nas rodas da alta sociedade. O trajeto marcava o “quem é quem” da sociedade. PUBLICIDADE
No século 19, com a difusão de cartões-postais, o turismo recebeu outro aporte: viajava-se para ver aquilo que a foto mostrava. As exposições mundiais de Paris (1889 e 1900), por exemplo, transformaram a torre Eiffel em referência obrigatória. Em um mundo sem muita luz, a iluminação elétrica de uma estrutura com mais de 300 metros deveria ser algo estonteante. As elites ocidentais tinham descoberto hotéis e grandes destinos. Crescia o hábito de viajar em barcos a vapor e, logo, aviões.
A jovem leitora e o jovem leitor não imaginarão o que contarei. Alguém ia viajar até a Europa em 1970, por exemplo? Dava-se uma festa de “bota-fora”. Os “argonautas” se despediam de todos, recebiam encomendas e conselhos: “Se for a Londres, coma em tal lugar”. Depois, no dia do embarque, uma pequena multidão acompanhava os bravos até o aeroporto. Aproveitava-se para tomar um café expresso, algo que muitos conheceram em Congonhas, por exemplo. As medidas de segurança eram muito mais fracas do que hoje. As mulheres embarcavam com “frasqueiras” repletas de líquidos. Dependendo da época e da pressurização ou não da aeronave, havia um saquinho plástico para as canetas-tinteiro. Poderiam estourar no voo!
Os anos avançam… Toda vez que eu pegava uma mísera barrinha de cereal, lembrava-me das refeições da Varig. Comi com talheres de metal, tomei bons vinhos a bordo da classe econômica, recebi guardanapos de pano. Imaginava como seria na executiva ou na primeira classe. A revista Ícaro era linda. Havia propagandas da companhia aérea na televisão com um voo para o Japão. Lembro-me do jingle até hoje. Nos intervalos de seriados como Bonanza, acompanhávamos a saga de Urashima Taro. Não se lembra?
Provavelmente, você é jovem. Procure a história da tartaruga que ele curou no Google. Aproveite o impulso retrô e escute “Estrela brasileira no céu azul, iluminando de Norte a Sul, mensagens de amor e paz, nasceu Jesus, chegou o Natal! Papai Noel voando a jato pelo céu, trazendo um Natal, de felicidades, e um ano-novo cheio de prosperidade”.
O turismo expandiu-se. Deixou de ser coisa exclusiva de uma elite. Movimenta massas. É um campo econômico vital. Cresceu tanto que despertou um neologismo: turismofobia, sentimento forte em lugares como Barcelona ou Paris. Legiões de turistas entopem calçadas e museus. Trazem dinheiro, claro, e fazem os preços subir. Formam filas em lojas de grife disputando bolsas. O turista clássico está sempre perdido, pedindo informações e querendo que alguém o ajude com uma foto. Alegram um setor da economia e infernizam outros.
Há alguns anos, lembro-me, muitos ironizavam turistas orientais, especialmente japoneses. Andavam em grupo e fotografavam muito. Ouvi de mais de um guia na Europa: “Eles viajam para fotografar”. Formularam-se hipóteses para explicar aquele simpático senhor nipônico de chapéu com uma máquina em disparos constantes. Ele era apenas a vanguarda. O mundo inteiro hoje viaja para fotografar e postar. Os orientais anunciaram a tendência: mais importante do que o monumento, a comida ou o quadro do museu é a foto com ele.
Não sou dos que cultivam um saudosismo ou dos que imaginam uma suposta idade dourada. Pelo contrário, vi com alegria a expansão das viagens aéreas para mais pessoas. Pergunto-me, seja você um rico da primeira classe ou alguém que pagou sua ponte aérea em dez vezes, qual o motivo do deslocamento? Em breve, talvez, voltemos a fazer mais viagens. Vamos “turistar” de novo! Resta pensar seriamente: por quê?
*Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, autor de A Coragem da Esperança, entre outros