Editorial
Por
Gazeta do Povo
O procurador da República Deltan Dallagnol.| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo
No ritmo atual de demolição de todas as conquistas obtidas pela Operação Lava Jato, não demoraria muito para que os bandidos fossem formalmente transformados em vítimas e os defensores da lei terminassem no banco dos réus, condenados. É o que o Tribunal de Justiça de Alagoas acaba de fazer ao determinar que o procurador Deltan Dallagnol, ex-coordenador da (agora extinta) força-tarefa da Lava Jato, indenize o senador Renan Calheiros (MDB-AL) em R$ 40 mil por danos morais, devido a tuítes de Dallagnol publicados antes da disputa pela presidência do Senado, no início de 2019.
O Judiciário do estado onde Calheiros fez sua carreira política não é a primeira arena onde o procurador e o senador se enfrentaram. O mesmo episódio já havia levado o alagoano a reclamar ao Conselho Federal do Ministério Público, que em setembro de 2020 aplicou uma vergonhosa pena de censura a Dallagnol, endossando uma série de falácias defendidas pelo relator do processo no CNMP. Aquele julgamento chegou a ser suspenso em uma decisão exemplar do então ministro do STF Celso de Mello (depois revertida por Gilmar Mendes, aproveitando-se de licença médica do colega de corte), cujas palavras precisam ser repetidas neste momento triste para a liberdade de expressão no Brasil.
Um servidor de trajetória exemplar é condenado por simplesmente exercer um direito constitucional, por ter apenas emitido opiniões que irritaram um senador que, mesmo sem ter estatura moral alguma, ainda é um dos “donos do poder” da República
Celso de Mello lembrou que a liberdade de expressão “destina-se a proteger qualquer pessoa cujas opiniões possam, até mesmo, conflitar com as concepções prevalecentes, em determinado momento histórico, no meio social ou na esfera de qualquer instituição, estatal ou não”. Tal garantia impede que essa pessoa sofra “qualquer tipo de restrição de índole política, de caráter administrativo ou de natureza jurídica, pois todos hão de ser igualmente livres para exprimir ideias, ainda que estas possam insurgir-se ou revelar-se em desconformidade frontal com a linha de pensamento dominante”.
O decano, entretanto, não parou por aí: lembrou que “a crítica dirigida a pessoas públicas (como as autoridades governamentais, os candidatos ou titulares de mandatos eletivos), por mais acerba, dura e veemente que possa ser, deixa de sofrer, quanto ao seu concreto exercício, as limitações externas que ordinariamente resultam dos direitos de personalidade” e, tratando especialmente da liberdade de expressão dos membros do Ministério Público, deixou muito claro que “qualquer medida que implique a inaceitável proibição ao regular exercício do direito à liberdade de expressão dos membros do ‘Parquet’ revela-se em colidência com a atuação independente e autônoma garantida ao Ministério Público pela Constituição de 1988”.
As acertadíssimas palavras de Celso de Mello mostram claramente o absurdo da decisão tanto do CNMP (que se encaixaria na “restrição de caráter administrativo”) quanto da Justiça alagoana (na definição de “restrição de natureza jurídica”). Afinal, Dallagnol nada mais fez que, em um primeiro tuíte, defender o voto aberto na eleição para a presidência do Senado e, em outra mensagem, afirmar que, “se Renan for presidente do Senado, dificilmente veremos reforma contra corrupção aprovada”, pois o alagoano “tem contra si várias investigações por corrupção e lavagem de dinheiro” – o que é a mais pura verdade, tanto sobre os processos e investigações contra Calheiros (fato público e notório) quanto sobre a possibilidade real de retrocesso no combate à corrupção caso o Senado caísse nas mãos de um dos grandes patrocinadores da Lei de Abuso de Autoridade.
O fato fundamental é que, objetivamente, não existe nenhum tipo de injúria nos tuítes de Dallagnol. Trata-se, única e exclusivamente, de crítica motivada pelo interesse público, já que centrada no futuro do combate à corrupção no Brasil. Confundir crítica com injúria é erro primário que revela extremo desconhecimento tanto da lei quanto da jurisprudência brasileiras, que jamais viram em críticas como as feitas por Dallagnol algo ilícito ou que desse margem a indenizações por dano moral. E, se estamos apenas diante de uma manifestação de opinião sem injúria alguma, todo o resto se torna completamente irrelevante, incluindo a própria veracidade ou não das opiniões, já que não cabe ao Judiciário aferi-la, e o alegado dano à reputação de Calheiros “perante terceiros, notadamente seus eleitores”.
Após a derrota de Calheiros naquele fevereiro de 2019, a Gazeta do Povo afirmou que, quando ele perde, o Brasil ganha. Pois o inverso também é verdadeiro: o país perde quando Calheiros ganha. Neste caso, perde porque um servidor de trajetória exemplar, que contribuiu de forma decisiva para desmontar o maior escândalo de corrupção da história do país, é condenado por simplesmente exercer um direito constitucional, por ter apenas emitido opiniões e lembrado verdades que irritaram um senador que, mesmo sem ter estatura moral alguma, ainda é um dos “donos do poder” da República. A “vingança dos corruptos”, na certeira expressão de Luís Roberto Barroso quando votou contra a suspeição de Sergio Moro, continua.
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