Cinema

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Maria Clara Vieira – Gazeta do Povo

Cena do filme “Fátima – A História de um Milagre”| Foto: Divulgação Diamond Films

Em 13 de maio de 1917, os tempos eram de tumulto em Portugal. Mal recuperado da sangrenta revolução republicana de 1910, o país acabara de ingressar na Primeira Guerra Mundial com o intuito de aumentar sua participação política na Europa, e sairia do conflito endividado, com altíssima inflação e mais de dez mil vidas perdidas. A Igreja Católica, que defendia o regresso das tropas portuguesas, fora silenciada pelos revolucionários: logo no primeiro mês, o novo governo expulsou ordens religiosas, fechou conventos e confiscou bens, além de proibir padres de dar aulas e usar trajes eclesiásticos em público.

Foi neste dia que irmãos Francisco e Jacinta Marto, de 7 e 9 anos, e sua prima Lúcia, de 10 anos, voltaram para casa afirmando ter visto “uma senhora toda vestida de branco, mais brilhante do que o sol”, que lhes pedira que voltassem ao local no mesmo dia, à mesma hora, durante os próximos cinco meses. Ali, sobre um arbusto de pouco mais de um metro, a senhora – sem revelar sua identidade – pedia que as crianças rezassem o terço todos os dias para, segundo a descrição feita anos depois pela própria Lúcia, “alcançassem a paz para o mundo e o fim da guerra”. O encontro inusitado teria acontecido na Cova da Iria, um bosque despovoado da freguesia de Fátima, onde as três crianças costumavam cuidar do rebanho de ovelhas. Começava assim o que hoje a Igreja Católica entende como a maior e mais importante aparição mariana dos tempos modernos: a história de Nossa Senhora de Fátima.

Parte deste caso controverso e impressionante, que caminha nos limites da fé e da ação humana, acaba de aterrissar nos cinemas brasileiros, sob o título de “Fátima – A História de Um Milagre”. Dirigida pelo italiano Marco Pontecorvo e com atuação de Sônia Braga (“Bacurau”, “Aquarius”) no papel da irmã Lúcia, cujas memórias serviram de base para a narrativa, a obra se debruça precisamente sobre os acontecimentos daquele 13 de maio, até a última suposta aparição da santa, em 13 de outubro de 1917, ocasião que teria sido marcada por um milagre às vistas de milhares de fiéis. O americano Harvey Keitel (“Cães de Aluguel”) faz as vezes do professor cético que, ao entrevistar a religiosa, leva-a a relembrar suas experiências de infância. Com boa fotografia e interpretações emocionantes – com destaque para os três pastores e para a atriz portuguesa Joana Ribeiro como Nossa Senhora – o filme é capaz de agradar católicos e descrentes, sobretudo pela qualidade que o distancia da maioria das produções confessionais conhecidas no Brasil.

Em entrevista à Gazeta do Povo, Pontecorvo confirmou sua intenção de conquistar o público secular. “A mensagem de Fátima é uma mensagem de paz. Além disso, eu acredito no poder da fé, no sentido de que essas três criancinhas estavam dispostas a brigar com todo mundo e perder tudo – sua família, sua comunidade – para defender o que elas acreditavam. Penso que isso é importante, mesmo para os descrentes, porque ser humano tem uma relação profunda e essencial com o transcendente”, disse o diretor, que reforça o caráter cético da obra, marcado tanto pelo personagem de Keitel quanto por sutilezas que permitem que o espectador especule sobre o que realmente aconteceu.

Um exemplo é a famosa visão do inferno, relatada pela irmã Lúcia em suas memórias: no filme, as imagens enxergadas pela pastorinha se parecem muito com as representações diabólicas nas paredes da paróquia que sua família frequentava. “A dúvida dentro da história é importante. É o instrumento dialético através do qual decidimos no que realmente acreditamos. Por isso, eu não quis dizer ‘essa é a verdade’: é você quem decide. Estou contando uma história que é importante para todos nós, independentemente de você acreditar que as crianças foram visitadas pela Virgem ou que Lúcia tinha uma grande imaginação”, afirma Pontecorvo. Nesse sentido, corroboram também as insinuações do administrador republicano da Vila de Ourém, decidido a abafar a “crendice popular” que tomava o vilarejo de Fátima em tempos nos quais qualquer discurso de esperança encontraria terreno fértil.

A Virgem do Estado Novo contra o comunismo
O filme de Pontecorvo é, inclusive, bastante fiel ao retratar o anticlericalismo do movimento republicano português. O fato de as supostas aparições terem acontecido neste período serviu, de um lado, para que a devoção se alastrasse pelo país em pouco tempo, à revelia dos políticos, e, por outro lado, para que se desconfiasse, desde o princípio, da “conveniência” de uma visita da mãe de Cristo a três crianças analfabetas. Duas delas, Jacinta e Francisco, morreriam vítimas da Gripe Espanhola dois anos após o ocorrido, enquanto Lúcia ingressaria no carmelo de Coimbra, onde faleceu em 2004, aos 97 anos de idade.

Ocorre que as mais vultosas polêmicas envolvendo os acontecimentos mostrados em “Fátima” começaram décadas após os fenômenos retratados pelo filme – período que o diretor, propositalmente, deixou de fora. Como que para apimentar o debate acerca dos interesses políticos e religiosos envolvidos nas aparições de Fátima, as mensagens supostamente recebidas pelos pastores extrapolaram as fronteiras portuguesas e influenciaram de forma decisiva conflitos de magnitude internacional.

Dentro de Portugal, por exemplo, a história de Fátima seria incondicionalmente abraçada pelo Estado Novo de Oliveira Salazar, que implementaria no país um regime similar ao instalado por Getúlio Vargas no Brasil em 1934. Porém, diferentemente daqui, onde o ditador agnóstico, à mesma época, fingia crer em Nossa Senhora Aparecida apenas para fortalecer sua projeção junto à população brasileira, Salazar era um homem profundamente religioso e acreditava que o poder do Estado deveria ser balizado pela moral católica. E, para manter-se no poder, contou com o apoio do bispado português.

Às vésperas da primeira eleição de deputados para a Assembleia Nacional, o bispo Manuel Gonçalves Cerejeira, braço direito de Salazar, enviou-lhe uma carta com uma mensagem da irmã Lúcia anexada. “É preciso fazer compreender ao povo que as privações e sofrimentos dos últimos anos não foram efeito de falta alguma de Salazar, mas sim provas que Deus nos enviou pelos nossos pecados”, escrevia a freira. Mas era o bispo quem insistia que “Salazar é a pessoa por Ele (Deus) escolhida para continuar a governar nossa pátria”. Neste período, o culto a Nossa Senhora e as aparições de Fátima passaram a ser ensinados como parte essencial da história de Portugal.

A maior das controvérsias protagonizadas pela santa, contudo, teria início em 1941, com a publicação das Memórias da Irmã Lúcia pela religiosa, que contava então com 34 anos. Foi em um documento enviado ao bispo de Leiria que a “vidente” falou pela primeira vez nos famosos “segredos de Fátima”: sendo um deles a visão do inferno mostrada pelo filme e, outro, a profecia de uma nova guerra, bem como de um ciclo de horrores causado pelo país que precisamente no ano das “aparições”, viveu uma revolução comunista.

“Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o meu Imaculado Coração triunfará”, teria dito a Virgem, conforme relatado por Lúcia. Mais quarenta anos depois, esta mensagem levaria um devoto de Nossa Senhora oriundo de uma nação esmagada tanto pelo nazismo quando pelo stalinismo a mover uma cruzada político-religiosa contra a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Já nos anos 1980, o papa João Paulo II faria a consagração da Rússia supostamente solicitada por Nossa Senhora. Na mesma época, rechaçaria, oficialmente, a Teologia da Libertação – a interpretação marxista do Evangelho. Não por acaso, a manchete do Jornal do Brasil de 3 de abril de 2005 dizia: “Morre João Paulo II, o pontífice geopolítico que venceu o comunismo e reestruturou a Igreja”.

A obra de Pontecorvo sequer esbarra nestes conflitos. “Eu quis ficar completamente de fora dessas questões. A irmã Lúcia começou a escrever suas memórias cerca de trinta anos depois daqueles acontecimentos. O mundo era outro. Se você me pedir hoje para escrever sobre algo que eu vivi quando tinha dez anos, certamente passará pelo filtro do que eu já vivi. Então, eu senti que era um ponto mais crítico”, justificou o diretor.

Cabe ressaltar que mesmo a cúpula da Igreja Católica não é unânime quanto à veracidade dos acontecimentos de Fátima, muito menos quanto a sua interpretação: o Catecismo não determina que os fiéis devem acreditar nas aparições, sendo o reconhecimento do Vaticano a mera permissão para a construção de templos e propagação do culto. Quer se creia ou não na existência, na aparição ou mesmo nas interpretações das mensagens atribuídas à Nossa Senhora, “Fátima” é um retrato respeitoso e delicado da força insubstituível de uma fé viva e comunitária, à prova do tempo e dos deuses materiais.


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