Senado
Por
Eli Vieira, especial para a Gazeta do Povo

O senador Renan Calheiros, relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), fala durante sessão de interrogatório com o ex-chanceler Ernesto Araújo, em Brasília (Brasil): gafes científicas| Foto: EFE / Joédson Alves

À parte as questões políticas e as acusações contra o presidente e demais atores envolvidos nas decisões em políticas públicas da pandemia, o relatório final da comissão parlamentar de inquérito do Senado em diferentes pontos cometes gafes científicas. Veja abaixo algumas delas.

1- Imunidade de rebanho “impossível”
Atribuindo a opinião à Luana Araújo enquanto alega que ela tem mais “afinidade com o tema” que Nise Yamaguchi (uma análise dos currículos delas poderia discordar), o relatório alega que “a imunidade de rebanho pela exposição ao vírus seria impossível de ser atingida” (p. 50).

Enquanto é verdade que seria irresponsável recomendar a infecção com o vírus, é preciso muito cuidado ao afirmar impossibilidades em ciência. Em um artigo popular do ano 2000, os cientistas T. Jacob John e Reuben Samuel propuseram a seguinte definição para imunidade de rebanho: a redução da infecção ou doença no segmento não-imunizado como resultado de imunizar uma proporção da população. Ou seja, é uma proteção conferida aos vulneráveis por aqueles que estão invulneráveis. Nesta definição, com a baixa nas mortes em muitos países, é possível que, com o auxílio das vacinas (a definição não se restringe à imunidade natural), a imunidade de rebanho não só seja possível, como já esteja sendo atingida.

O relatório às vezes faz as qualificações necessárias para corrigir esse erro, às vezes volta a cometê-lo — porém, insinua que a proteção da imunidade natural seria instável, o que é o oposto do que sabemos hoje. A imunidade natural confere uma proteção mais diversa e duradoura ao vírus e não é um consenso, ainda, se a vacina dá um incremento de proteção para quem já teve a doença.

2- Confusão conceitual a respeito de tratamento precoce
O relatório acusa determinados atores de criar ambiguidades propositais no termo “tratamento precoce” e que a introdução do termo “atendimento precoce” seria uma das confusões. Porém, o próprio relatório cria confusão ao negar que haja sinonímia entre “tratamento”, “atendimento” e “atenção” precoces. Ora, a politização pode jargonizar palavras, mas o termo é claríssimo na nossa língua e essa distinção traçada pelo relatório não faz sentido a não ser para que se facilite atacar a todos que utilizaram o termo “tratamento precoce”. Um fenômeno que é precoce já está em acontecimento, e é prematuro ou acontece antes de um determinado prazo.

O dicionário Houaiss conceitua “precoce” como ” que amadurece antes do tempo normal”, em referência a frutos. No caso, quer-se colher o fruto de mitigar os sintomas da doença tão cedo quanto possível. Só os senadores da CPI parecem estar confusos a esse respeito. O termo tratamento precoce é amplo e isso, sim, é proposital, pois a intenção foi encontrar qualquer droga que possa, com repropósito, ajudar a combater a Covid-19. Não há sequer uma necessidade de restringir a uma lista pré-definida de drogas. O relatório não menciona, por exemplo, a fluvoxamina e a budesonida, que têm bons resultados mencionados aqui na Gazeta do Povo em junho. Parece até que há um esforço para deixar de fora as drogas que mostraram ter evidências de alguma eficácia, para confirmar a alegação de que têm “pouca ou nenhuma” evidência.

É positivo, no entanto, que o relatório fale em evidências serem poucas, muitas ou nulas. Isso é bem diferente da retórica desinformada em filosofia da ciência a respeito de “comprovação”. Provas, que têm caráter definitivo, são para a matemática e a lógica. As ciências empíricas, incluindo as médicas, trabalham com evidências.

3- Postura contraditória quanto à ivermectina
Fraudes científicas foram descobertas a respeito da eficácia da ivermectina, que foi inflada nelas e na postura ativista de muitos, que atinge o pico naqueles que alegam, sem evidências suficientes, que só essa droga daria um fim na pandemia sozinha. Fraudes contrárias ao uso da droga também foram descobertas, como a fraude midiática envolvendo a revista Rolling Stone (em setembro, a Rolling Stone publicou que os hospitais de Oklahoma estavam recusando-se a atender vítimas de armas de fogo porque estavam lotados de casos de overdose de ivermectina para cavalos. O principal hospital envolvido desmentiu a história, e mostrou-se que o erro era da própria publicação, que tirou de contexto falas de um entrevistado).

Uma das posturas contrárias mais irracionais foi alegar que a droga não passa de um vermífugo para cavalos. A ivermectina rendeu um prêmio Nobel pelo seu uso em humanos e é uma droga segura. Os autores do relatório, enquanto citam um parecer sensato coordenado pelo pneumologista Carlos Carvalho dizendo que ela pode ter eficácia (p. 69), mas precisa de mais investigação, adotam na postura pública em diversos momentos uma certeza de que há “ineficácia comprovada” e chegam a traduzir um tweet completamente político da FDA que insinua que ivermectina é só para cavalos e vacas (p. 62), um ponto baixo na postura pública dessa agência reguladora americana.

Joe Rogan, dono do maior podcast do mundo, tomou ivermectina como tratamento precoce para Covid-19 por prescrição médica. Convidado ao podcast, o médico Sanjay Gupta, da CNN, admitiu que a CNN mentiu ao atacar Rogan por ter seguido esse tratamento chamando a ivermectina de “vermífugo para cavalos”.

Em suma, a eficácia da ivermectina como tratamento precoce ainda está em debate, e os que pulam às certezas e aos exageros o fazem por compromissos políticos, incluindo os membros da CPI e da grande mídia. A postura de citar relatórios que deixam em aberto a possibilidade de a ivermectina funcionar e depois dar certeza de que é ineficaz ao ponto de sua prescrição ser criminosa é completamente contraditória.

4- Distorção pró-mulheres contra os fatos
O identitarismo está em alta e os políticos estão atentos a isso. Então não é surpresa que o relatório alega que a “Covid-19 atingiu mais mulheres do que homens”. A rigor, isso não é incorreto se “atingido” significa “infectado”. Porém, é uma escolha estranha de vocabulário. Mortos são atingidos? Parece que sim. Quem morre é atingido mais do que quem se infecta? Mais uma vez, a resposta parece ser sim.

No estado de São Paulo, quase 60% dos mortos eram homens. Diante do fato de que homens têm sintomas mais severos da covid e morrem mais que as mulheres, o que justificaria essa alegação do relatório da CPI? Parece ser a moda de tratar as mulheres como cidadãs especiais, aproveitando a onda eleitoreira direcionada a elas com bajulação e projetos de lei identitários que ameaçam ainda mais no país a igualdade de tratamento dos cidadãos. Tudo em nome de exibicionismo moral.

Enquanto não se espera que um relatório de uma comissão parlamentar de inquérito seja um documento científico rigoroso, essas gafes vão além disso. Entram no campo de pecados contra a linguagem clara, contra a lógica e contra o bom senso. Todos querem justiça a respeito da gestão da pandemia. E essa justiça fica mais alcançável quando se evitam esses erros.


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