Relatório Final
A vanguarda do atraso é um luxo caroVenha passar raiva comigo! Fiz uma análise técnica sobre as mais de 200 páginas em que a CPI da Covid fala sobre “fake news”.

Por
Madeleine Lacsko – Gazeta do Povo

O relator da CPI, Renan Calheiros, apresenta lista de indiciados na sessão final.| Foto: Roque de Sá/Agência Senado

Eu não deveria ter lido a parte sobre “Fake News” no relatório final da CPI da Covid. Não é que está errado, é que foi feito como se a gente vivesse na década de 1980, pré-redes sociais. O ecossistema da desinformação é complexo e já é extensivamente estudado, mas o relatório traz uma argumentação que tem a complexidade intelectual do Dollynho. Eu li todas as 221 páginas de delírio no capítulo 9 do relatório final. Não vou passar raiva sozinha, divido com vocês.

Ainda não decidi qual parte do relatório sobre “Fake News” é mais antiquada ou surreal. Tenho muitas opções, difícil escolher uma só. Quem mais ganhou com os conteúdos de desinformação simplesmente não atendeu pedidos de informação da CPI da Covid e ficou por isso mesmo. As medidas legais sugeridas foram declaradas em julho violação de Direitos Humanos pela ONU. Quem fez o relatório não tem a menor ideia do que sejam “Fake News”.

O cidadão comum não tem obrigação de saber dessas coisas, inclusive paga impostos altíssimos que sustentam quem teria a obrigação de saber. Por aí tem o barato que sai caro, aqui tem o caro que sai ainda mais caro. O relatório inteiro tem base no que seriam ou não fatos, no que é verdade ou mentira. Estivéssemos em 1970, seria pertinente. Ocorre que não estamos. Vida digital é um contexto que muda o equilíbrio de poderes independentemente do conteúdo.

Até uns 10 anos atrás, realmente a maioria das pessoas pensava que é possível combater esquemas de “fake news” ou campanhas de desinformação fazendo desmentidos. É algo importante para quem tem dúvida e está aberto a ouvir qualquer versão, mas essas pessoas não são as que produzem ou são massa de manobra em campanhas de desinformação. E essas campanhas não precisam mentir, podem ser feitas usando só verdades.

Confesso que tenho birra de CPI e dessa especialmente. Um sujeito foi preso por Renan Calheiros porque mentiu. Como explicar um adulto que consegue levar isso a sério depois dessa provocação cômica de alto calibre? Chama-se brasileiro. É bom que tenhamos acordado para a política, éramos apáticos. Agora falta avisar a galera que não é novela nem BBB, torcer para personagem e celebrar reviravolta tem consequências reais.

Começo destrinchando algo que é técnico. As expressões “fake news”, desinformação e propaganda amplificada são usadas pelo cidadão em inúmeros contextos, a língua é viva. No entanto, tecnicamente, têm significados precisos. Ao confundir os dois universos, o relatório se perde. Exemplos práticos. Imagine um documento do Judiciário que dissesse “o juiz não é competente para julgar” mas realmente colocasse em dúvida a capacidade do juiz. É por aí.

“Fake News” é algo que caiu na boca do povo como notícia falsa ou tendenciosa, feita por jornalistas, veículos de comunicação ou qualquer cidadão. No entanto, existe uma definição técnica e que não é da comunicação, é dos cientistas de várias áreas que pesquisam o tema. Tenho falado sobre isso em outros artigos.

Segundo publicação científica da editora Routledge unindo estudos de psicologia, neurologia, ciência de dados, cientometria, neuropsicologia e várias outras áreas, “Fake News” é um fenômeno de criação de realidade alternativa unindo fatos reais com relações falsas de causa e consequência. Exemplo anedótico: começo a comer um pão, o fulano ao lado olha para ele com cobiça e ele cai com a manteiga para baixo – logo, o olho gordo do fulano derruba pães.

Campanhas de desinformação podem utilizar o esquema de Fake News para mobilizar grupos. Ocorre que são necessariamente orquestradas e usam a boa fé de uma maioria para legitimar impressões errada que passam a ser críveis para um grupo. Fiz um artigo que praticamente desenha essas operações. Esse tipo de campanha sempre existiu, os métodos mais usados hoje são os criados pela União Soviética e lapidados para a era digital pelo governo Putin. Não são ferramentas ideológicas, são estratégias de aplicação suprapartidária.

Há, no entanto, um novo conceito que acaba demolindo toda a argumentação sobre “Fake News” da CPI da Covid: a Propaganda Ampliada. Campanhas de desinformação não precisam ser feitas com mentiras, podem ser feitas com verdades. A pesquisadora de Stanford Renée DiResta escreveu um paper sobre o tema recentemente e mostrou como verdades que mudam a pauta da imprensa distorcem a realidade tanto quanto mentiras. Não é conteúdo, é contexto.

Nós tendemos a ver propaganda como sinônimo de publicidade, mas são duas coisas diferentes. Publicidade é tornar algo público. Propaganda é moldar uma forma de pensar de acordo com interesses de um grupo. Tanto a desinformação quando a propaganda amplificada só são possíveis com a participação, geralmente involuntária, da imprensa tradicional. Pode parecer complicado, mas vou usar o exemplo da pesquisadora e você vai entender várias situações brasileiras.

Ela relata como a hashtag #PelosiMustGo mobilizou o noticiário nacional nos Estados Unidos. Nancy Pelosi é a democrata mais poderosa do país. Alguém que não gosta dela fez um tweet dizendo #PelosiMustGo, ela deveria sair. De onde? Por quê? Nunca se soube. Primeiro perfis robotizados começaram a espalhar a postagem legítima de um cidadão comum. Quando ela chegou aos Trending Topics, chamou a atenção de influenciadores.

Os influenciadores contra Nancy Pelosi ganharam o contraponto dos rivais. Eles postavam que “#PelosiMustGo to the White House” (Pelosi deve ir para a Casa Branca, ser eleita presidente). Logo havia uma tonelada de jornalistas das mídias tradicionais falando disso nas redes sociais. Então, surgiram artigos, entrevistas e debates na imprensa tradicional.

Uma discussão nacional envolvia grupos que se opunham ao defender que Nancy Pelosi deve ou não sair. De onde? Por quê? Não se sabe. Mas o debate público foi sequestrado para analisar a questão. Não houve mentira, eram opiniões. Ocorre que era apenas um embate nas redes, não uma questão real. Propaganda Amplificada é uma forma de desinformar porque leva a crer que algo é uma questão urgente quando nem é uma questão. Pense bem: quantas vezes você viu isso durante a pandemia?

O relatório da CPI da Covid, no entanto, ignora toda a produção científica sobre “Fake News”, desinformação e Propaganda Amplificada. Tem um capítulo inteiro em que tenta opor fatos a mentiras, ignora a mediação feita pelos algoritmos das redes sociais e a possibilidade de distorção da realidade sem o uso de mentiras. É um documento fundado em negacionismo científico que tenta exigir condenações penais por negacionismo científico. Interessante.

Como eu tenho aflição de passar raiva sozinha, vou transcrever trechos do relatório para ter sua companhia. “Mais uma vez, manifestamos nosso repúdio à perniciosidade dessa prática, que permite ganhos com base simplesmente no volume de audiência, sem ter qualquer preocupação com o conteúdo difundido. Para aumentar seus lucros, os titulares desses canais, páginas e perfis desenvolveram até mesmo técnicas para testar em sua audiência que tipo e forma de conteúdo geram mais engajamento e, portanto, mais retorno. Disso, resulta um uso cada vez mais acentuado do sensacionalismo como forma de promoção de seus conteúdos e da falsidade como meio de produzi-los”, diz o relatório.

Cerca de 70% das visualizações de conteúdos em redes sociais ocorrem por sugestão dos algoritmos das plataformas, não é algo espontâneo. O relatório trata a questão como se algo postado em redes sociais realmente atingisse o público porque aquilo é atraente, como se fosse uma televisão. Ocorre que não vemos aquilo que decidimos seguir nem nossos seguidores vêem tudo o que postamos. A maioria dos posts que vemos não é o que escolhemos ver, é o que as redes sociais escolhem com base no que nos causará mais reação.

Ao tratar do ecossistema antivacina, um mercado bilionário onde quem mais lucra são as Big Techs, o relatório da CPI da Covid absolve as redes sociais. Aliás, é interessante que o relatório em si seja uma peça de desinformação baseada em fake news. Há dois fatos e cria-se uma relação de causa e consequência imaginada, mas colocada como certeza. Ignorar o funcionamento do universo digital leva a ser massa de manobra na desinformação.

“Como consequência desse discurso, citamos resultados de pesquisas de opinião realizadas pelo Datafolha, que demonstram que o percentual de brasileiros que não pretendiam se vacinar aumentou de 8%, em agosto de 2020, para 23%, em dezembro de 2020, após os polêmicos pronunciamentos do chefe do Poder Executivo”, diz o relatório. O percentual de brasileiros que não pretendia se vacinar aumentou em agosto de 2020? Sim, é fato. O presidente faz discurso antivacina igual natureba dos anos 1990? Sim, é fato. Isso pode ter influenciado na vacinação? Pode, mas não é o único fator. Além disso, ele está até hoje falando contra vacina e o percentual de vacinados é maior do que o previsto em pesquisas de opinião ano passado. Fake News raiz, parabéns CPI!

Tem mais. “Ou seja, quanto mais enganam sua audiência, mais benefícios econômicos obtêm, a despeito das nefastas consequências que vêm causando na pandemia. Como já observado, isso decorre da usurpação e do desvirtuamento do processo de monetização das plataformas digitais realizado por essas pessoas, que auferem ganhos com base na quantidade de visualizações de suas páginas, na cobrança de assinaturas, na venda de produtos e nas doações de seus seguidores, a despeito do conteúdo fraudulento que propagam” (grifo meu), diz o relatório da CPI da Covid.

A CPI da Covid afirma, num documento oficial, que é possível USURPAR e DESVIRTUAR o processo de monetização das plataformas. Se quem determina as regras de distribuição de conteúdo e impulsionamento são as plataformas, por meio de algoritmos que controlam e não revelam, como é que burla isso? Mágica, demanda espiritual, força do pensamento? A CPI afirma que é preciso conter mentiras vendidas como verdade, mas também faz isso. Complicado.

Agora uma pérola. “Diante dessas evidências, também resta patente a responsabilidade das redes sociais e das plataformas digitais na difusão das fake news. Como os algoritmos usados por essas empresas não levam em consideração o teor desinformativo das postagens, eles acabam estimulando os abusos por meio de suas plataformas. Dessa forma, é imprescindível endurecer as regras de publicação de conteúdo e monetização de seus titulares, impedindo que tais artifícios sejam empregados para atentar contra a saúde pública ou qualquer outra finalidade contra o interesse público”, (grifo meu) diz o relatório.

Gente, eu vou levar essa galera da CPI da Covid no Congresso dos Estados Unidos, Austrália, União Europeia, China e Taiwan. Aliás, vou levar até em Gana, que briga com as Big Techs em cortes norte-americanas. Os caras descobriram o que o algoritmo leva em conta sendo que isso jamais foi divulgado por nenhuma empresa. Se eu fosse autora do relatório da CPI, já diria que é Fake News. Mas isso seria maldade, foi telepatia mesmo.

Suponhamos que a galera da CPI da Covid tenha vivido os últimos 10 anos trancada numa caverna no Afeganistão. É o recurso mental que utilizo para compreender como o relatório não atribui responsabilizações levando em conta o explosivo depoimento de Francis Haugen, delatora do Facebook que está apoiando investigações no Congresso dos Estados Unidos. Ela disse que a rede social sabe sim que seu algoritmo impulsiona propositalmente desinformação, mas está num beco sem saída. Se mudar, quebra. Com ela quebram milhões de empresas que dependem do ecossistema Whatsapp/Instagram/Facebook.

O relatório mostra quando influenciadores brasileiros ganharam com conteúdo antivacina. Não é muito preciso, porque classifica como antivacina até mesmo dizer que as vacinas são experimentais. E elas são mesmo, os cientistas e as próprias fabricantes explicam isso. Existe um ecossistema antivacina, com pratos feitos para toda ideologia, dos progressistas veganos aos mais conservadores.

A indústria de produção de conteúdo antivacina é lucrativa desde antes da pandemia. Já são organizados e até fazem reuniões anuais do setor como fazem, por exemplo, a indústria automotiva, farmacêutica, de moda, etc. Nos Estados Unidos, a quase totalidade do conteúdo é produzida por 12 canais. Juntos, eles lucraram em 2020 só com conteúdo online US$ 36 milhões. Quanto as redes sociais lucraram com o conteúdo produzido por eles? US$ 1,1 BILHÃO. A CPI perguntou às redes sociais quanto elas lucraram com conteúdo antivacina? Não. Nem perguntou.

“Dados do Google AdSense que constam em levantamento feito pelo Ministério Público Federal encaminhado à CPI apontam que alguns canais no YouTube com perfis bolsonaristas receberam cerca de US$ 1,1 milhão em 740 monetização dos vídeos pela plataforma. Na tabela a seguir é possível perceber que um dos investigados monetizaram aproximadamente meio milhão de dólares em pouco mais de dois anos, divulgando conteúdos pró-governo Bolsonaro, enquanto dois outros receberam no mesmo período trezentos mil dólares. Entre os canais mais lucrativos, estão o Folha Política (mais de US$ 486 mil), Vlog do Lisboa (US$ 87.012,29) e o canal do Roberto Boni (US$ $32.120,43)” diz o relatório.

Monetização não depende de talento, depende de produzir o conteúdo que as redes sociais decidem distribuir porque mantém os usuários mais tempo na plataforma. Atualmente, 70% das visualizações de vídeos no YouTube é feita por sugestão do algoritmo, aquele vídeo que vem depois automaticamente ou os demais que aparecem ao lado quando você busca. Estudos da NYU e de Cambridge mostravam algo confirmado pela delação do Facebook: postagens que geram embates entre dois grupos viralizam 75% mais.

A CPI da Covid perguntou ao Google quanto das visualizações desses canais foram feitas via busca espontânea e quantas foram feitas porque o próprio YouTube sugeriu esses vídeos? Não. A CPI da Covid perguntou ao Google quando o YouTube lucrou com esses vídeos que geraram aos produtores de conteúdo quase meio bilhão de dólares? Também não. Agora vai, né?

Tem mais. “Abaixo, são apresentadas fake news publicadas por esses veículos ao longo da pandemia. Para isso, contou-se com a colaboração dos internautas que fizeram denúncias e também com a valiosa contribuição dos integrantes e colaboradores voluntários do grupo de Telegram Camarote da CPI. A lista de desinformação encontrada e publicada por esses sites não deixa dúvidas sobre a necessária responsabilização futura desses agentes e a adoção de medidas para evitar a proliferação e livre atuação de disseminadores de fake news, escondidos sob os valiosos princípios constitucionais da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão”, diz o relatório.

A sensação que eu tenho ao ver o povo da CPI da Covid nas redes sociais é a mesma de soltar criança de 2 anos sozinha no mar. O Telegram é, atualmente, a rede social legalizada que mais preocupa especialistas em democracia e combate ao terrorismo. Ela foi fundada na Rússia, mudou-se para os Emirados Árabes Unidos e não obedece nenhum protocolo de segurança que faça sentido no ociente. Aliás, nem atende reclamos de autoridades ocidentais mesmo em casos de terrorismo.

A CPI da Covid municiou-se de informação por meio de canais inexperientes em política mas bem intencionados, criados por cidadãos nas redes sociais. Essas contas anônimas noticiavam a CPI, não faziam fake news nem desinformação. Foram, no entanto, massa de manobra importante para a Propaganda Amplificada que garantiu a manutenção do ambiente de desinformação. Eles abriram um grupo no Telegram, a rede legalizada mais problemática e o que apareceu lá entrou no relatório. É como criança que entra em carro de estranho para pegar doce.

O tiro de misericórdia: propostas legislativas
A repercussão do relatório final da CPI da Covid em si é um exemplo lapidar de como a Propaganda Amplificada é o instrumento mais importante da desinformação. O que a gente mais ouviu? Os crimes pelos quais Bolsonaro foi indiciado. CPI indicia? Não. CPI sugere indiciamento aos órgãos competentes. Onde a CPI pode agir? No Congresso. Então vamos a essa ação fantástica que eu não vou passar raiva sozinha por pagar esse naipe de trabalho.

“Esta Comissão analisou quase uma centena de proposições, que estão em andamento no Congresso Nacional, com vistas a coibir a disseminação de fake news, especialmente quando ela ocorre por meio das redes sociais. As propostas analisadas buscam preencher as lacunas existentes no ordenamento jurídico por diversos meios. O primeiro é a tipificação da conduta de produzir ou disseminar notícia falsa no âmbito do Direito Penal. Diversos projetos fazem essa abordagem, o que nos permite concluir ser este um espaço relevante para aprimoramento da legislação brasileira.” (grifo meu), diz o relatório.

Tem mais: “Na esfera do Direito Eleitoral, a infração já foi devidamente caracterizada com o advento da Lei nº 14.192, de 4 de agosto de 2021, que tornou crime divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado”, diz o relatório. Essa lei eu tenho paixão. Se a pessoa divulga fatos inverídicos mas diz pensar que eram verdade, então não aplica. Se não se prova cabalmente sua capacidade de influenciar o eleitor, também não se aplica. E a gente pagou por isso.

Na contramão de todas as propostas legislativas mais avançadas do mundo sobre manipulação digital, a CPI da Covid propõe criminalizar a mentira. Mentir é maligno, concordo. Se fosse possível conter mentira por lei, ela já teria sido extinta da humanidade. Já há leis para reparar danos causados por mentiras e distorções. Eu, aliás, uso bastante. Ocorre que isso não tem a ver com fake news. A CPI diz literalmente que Fake News são notícias falsas, ou seja, nem sabe sobre o que está legislando.

Tem mais. Pelo tanto que a gente pagou por isso, vocês merecem passar raiva junto comigo. “Também devem ser apresentadas propostas por esta Comissão sobre a identificação não apenas de usuários e perfis nas redes sociais, mas também na publicação de páginas na internet, por meio de domínios próprios, por exemplo. Assim, não apenas as aplicações de redes sociais precisariam dispor do cadastro completo e atualizado de seus usuários, mas também empresas de registro de domínio, hospedagem de conteúdo e elaboração de páginas e sites na internet”, diz o relatório.

Eu quase caí da cadeira quando li que a CPI da Covid recomenda fazer uma lei em que empresas de registro de domínio tenham o cadastro do usuário. Isso já é obrigatório e feito pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, criado por lei há quase 20 anos e com participação do governo. Sabe a página Registro.br? Todo mundo que tem site sabe que seus dados ficam lá, não tem como criar site no Brasil sem aprovação do CGI, que exige todos os nossos documentos. Confira os órgãos governamentais que fazem parte do Comitê Gestor da Internet:

É verdade que o Congresso Nacional não participa do Comitê Gestor da Internet. No entanto, é dever dos parlamentares fiscalizar a atuação do Poder Executivo. A CPI da Covid, a mais badalada na internet, resolveu ditar regras sobre internet. Mas o pessoal não sabe nem o que o próprio governo faz nessa área, sendo que é dever deles fiscalizar? Por isso me ufano do meu país. Orgulho, viu?

Aqui, a cereja do bolo. “Ainda que em certos casos o uso de contas anônimas seja justificável, tal como forma de proteção a pessoas vulneráveis, a regra geral a ser observada, conforme inscrita na própria Constituição, é que o exercício da liberdade de expressão esteja condicionado à vedação do anonimato. Somente a partir da devida identificação do eventual infrator é que se pode responsabilizá-lo por seus atos e exigir a reparação dos danos causados. Assim, alguns projetos procuram aumentar a responsabilidade dos provedores de aplicação de internet, uma vez que já se sabe que essas empresas dispõem de recursos tecnológicos para, no mínimo, restringir o alcance de conteúdos maliciosos”, diz o relatório.

Como em todo bolo, vamos por partes. A primeira é a confusão entre anonimato e pseudônimo. Contas anônimas não existem, o que existe é a negativa das redes sociais em fornecer as identidades nos países que, como o nosso, proíbem manifestação anônima. Todo usuário é identificado pelo IP. “Ah, é só pedir judicialmente”, dizem os inocentes. Vai lá pedir, eu já fui. As redes não fornecem. Aliás, não forneceram nem para a própria CPI da Covid, que pediu. Ficou por isso mesmo.

A CPI da Covid diz que “somente a partir da devida identificação do eventual infrator é que se pode responsabilizá-lo por seus atos e exigir a reparação dos danos causados” e aqui concordo 200%. Ocorre que a distribuição de conteúdo é feita pela própria rede social segundo regras que ela própria cria. Então um infrator já tem, é a própria rede social. Foi identificada? Foi. O que a CPI fez? Nada. Aliás nem exigiu que parasse de ocultar os demais infratores.

Muita gente, manipulada pelos advogados das redes sociais, cai na balela da comparação entre a atividade delas e as companhias telefônicas. “Então vão punir a companhia telefônica porque o sistema dela foi usado durante um sequestro? Agora vão ter de ouvir todas as conversas?”, costumam perguntar os manipulados. Ocorre que as redes sociais já ouvem, coletam todo tipo de dado, sistematizam e usam para os próprios interesses. Eles já estão ouvindo todo mundo, mas convencendo de que não têm nada com isso.

Ocorre que a solução proposta pela CPI da Covid para enquadrar as Big Techs, só dá mais poder a elas e é oficialmente considerada uma violação de Direitos Humanos pela ONU. É um conteúdo público desde julho sobre legislação, mas nossos legisladores não sabem disso? Ou propositalmente estão propondo violar Direitos Humanos? No bingo do que há de errado com as legislações de combate à desinformação, o Brasil tem o orgulho de preencher a cartela de primeira.

Termino com o último parágrafo da CPI da Covid sobre Fake News: “Espera-se que condutas de criação, disseminação e impulsionamentos automatizados de notícias falsas passem a ser tipificados e imponham penas capazes de coibir a prática criminosa de desinformar para obter ganhos financeiros, pessoais ou políticos. Afinal, está mais do que comprovado que fake news matam”, conclui o relatório.

Eu gostei da lacradinha “Fake News matam”. Quem lê até vai pensar que esse povo sabe o que são fake news, boa ideia. E a CPI espera que algo seja feito. Quem espera sempre alcança, né, Brasil? Falta só alguém avisar os nobres senadores que eles não são pagos para esperar, são pagos para fazer. De preferência fazer direito.


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