Editorial
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Gazeta do Povo

O senador Marcelo Castro (MDB-PI) durante sessão do Congresso que aprovou o PRN 4/2021.| Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Quando confirmou a liminar de Rosa Weber que determinava a suspensão da execução das emendas de relator (ou RP9, no jargão legislativo) de 2021, o Supremo Tribunal Federal mais uma vez atropelou prerrogativas do Poder Legislativo – ainda que mal usadas, pois a imoralidade de tais emendas já está amplamente estabelecida. No entanto, a corte acertou quando exigiu o fim de todo o segredo que envolve a distribuição de recursos públicos por meio desse mecanismo, seja para as emendas já executadas, seja para os orçamentos futuros. Afinal, a transparência é um dos princípios da administração pública elencados no caput do artigo 37 da Constituição. O Congresso, no entanto, fez pouco deste princípio e da determinação do STF ao aprovar uma regulamentação que mantém o segredo sobre as verbas já executadas.

O Projeto de Resolução do Congresso Nacional (PRN) 4/2021 foi aprovado na segunda-feira, dia 29, passando tranquilamente pela Câmara (onde venceu por 268 a 31), mas quase naufragando no Senado (onde houve 34 favoráveis e 32 contrários). De acordo com o texto, relatado pelo senador Marcelo Castro (MDB-PI), as indicações e solicitações deverão ser publicadas na internet em algum campo da Comissão Mista de Orçamento (CMO) e encaminhadas ao governo federal – mas apenas a partir do Orçamento da União de 2022. Além disso, o PRN 4 ainda determina que o valor total das emendas de relator não ultrapasse a soma das emendas individuais e de bancada – o que, por enquanto, deixaria cerca de R$ 16 bilhões nas mãos do relator do Orçamento de 2022, deputado Hugo Leal (PSD-RJ). No entanto, o PRN 4 não trazia uma determinação sequer a respeito das emendas já executadas, em desafio claro à decisão do plenário do Supremo.

A aprovação do PRN 4 é um duplo acinte: mantém nas mãos do relator o poder de destinar um enorme valor e desafia claramente uma ordem do STF para que se restaure a transparência na destinação dos recursos públicos

Castro defendeu seu texto apoiando-se na “trava” ao valor total das emendas RP9. “O relator do Orçamento deste ano, 2021, fez R$ 30 bilhões de emendas. Fez por quê? Porque quis. Ele poderia ter feito R$ 100 bilhões, não tinha limite. O que é que eu estou fazendo aqui na nossa resolução? O Supremo não perguntou se há limite ou se não há, nem na sua decisão ele trata disso. Nós estamos fazendo a mais”, afirmou, como se realmente estivesse prestando um grande serviço ao país. No entanto, o limite estabelecido por ele continua bastante generoso para um mecanismo cuja própria existência é muito questionável, e beira o sarcasmo afirmar que “estamos fazendo a mais” quando, na verdade, não se faz o básico, que é cumprir uma decisão judicial.

E as justificativas tanto de Castro quanto dos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), sobre a impossibilidade de oferecer os dados sobre as emendas RP9 de 2020 e 2021 foram desmoralizados pela área técnica do Senado. A Consultoria de Orçamento, Fiscalização e Controle da casa, em nota técnica assinada pelo consultor Fernando Moutinho Ramalho Bittencourt, afirmou ser “comprovadamente falso” o argumento de que seria impossível associar emendas passadas a seus verdadeiros autores. “Se houve ‘milhares de demandas’ e os relatores-gerais encaminharam-nas na forma de indicações, algum tipo de procedimento organizativo tiveram para fazê-lo, e algum registro documental ou informacional mantiveram para seu próprio controle; caso contrário, teriam agido sem saber o que estavam fazendo (o que evidentemente não é o caso). Nada, absolutamente nada, obsta que sejam publicadas essas informações. Não há ‘impossibilidade fática’”, diz a nota.


Na verdade, os motivos para se manter o sigilo são muito mais políticos que técnicos, e foram acertadamente descritos pelo líder do Novo, deputado Paulo Ganime: “Vai dar muito problema entre aqueles que fizeram acordo se eles souberem que um recebeu 10 e outro 100 para participar do mesmo acordo. Vai ser bonito ver isso, vai colocar em evidência toda a negociata daqui”, disse o parlamentar. Sua observação lembra que o sigilo não é o único defeito das emendas RP9, pois elas também violam a isonomia entre parlamentares, ao tornar alguns deles mais “merecedores” que outros, já que as emendas de relator não se sujeitam às mesmas normas que regem, por exemplo, as emendas individuais.

A aprovação do PRN 4, portanto, é um duplo acinte: mantém nas mãos do relator o poder de destinar um enorme valor por meio de um mecanismo cuja destinação original era muito diferente (a correção, amparadas em critérios técnicos, de erros e omissões no projeto de lei orçamentária enviada pelo governo), e desafia claramente uma ordem do STF para que se restaure a transparência na destinação dos recursos públicos. “Está na hora de a gente dar um freio de arrumação e fazer uma coisa mais razoável, mais transparente e mais compartilhada”, afirmara Marcelo Castro logo após a votação no Supremo; agora todos sabem o que ele entende por “razoável”, e está claro também que seu “freio” está bastante desregulado.


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