Ironias da pandemia
Por
Luiz Felipe Pondé – Gazeta do Povo
Carnaval no Rio de Janeiro, em 2019| Foto: Bigstock
Devemos ou não fazer Carnaval em 2022? Na minha visão, não. Mas os argumentos a favor são sui generis quando se olha a pandemia sem medo de ser infeliz.
Os mortos da pandemia já foram esquecidos. A memória social tem a profundidade de uma asa de mosca. Todas as manifestações melosas pelos mortos se perderam no voo das moscas.
O primeiro fato óbvio é que encher a cidade com gente bêbada, mijando nas ruas, é a cara do luto, não?
Claro que não. Atenção para o conteúdo de ironia. Comemorar o carnaval agora é cuspir nos mortos. Acho bem feio, depois de tantas juras de afeto, a moçada mijar por aí ao sabor dos bloquinhos. Por que não mija logo nos túmulos?
Outro detalhe é que muito se xingou Bolsonaro durante a pandemia, com razão. Mas como fica a aglomeração no bloquinho? Agora pode?
Os mesmos que xingaram o presidente agora defendem o Carnaval porque é uma festa democrática. Será mesmo? O Carnaval sequestra a cidade, ele é zero democrático.
A pandemia, caso tivéssemos memória, poderia ser o túmulo de muitos especialistas. Muito se afirmou de coisas que não aconteceram. Verdade que pouco se sabia no início, mas há algo de novo nessa pandemia mesmo. O quê?
O desalento quando a delta não nos levou de volta aos 4.000 mortos por dia era sentido da mesma forma como sentimos o vento. Invisível, mas material. A nova variante sul-africana ômicron pode ser, enfim, uma nova esperança. Especialistas e mídia estão cheios de tesão por uma nova chance de ampliar engajamento e negócios.
Uma nova “chave especialista” de análise é: será esta pandemia um divisor de águas da humanidade?
Talvez, se ela voltar com muita força e matar 1 bilhão de pessoas e destruir a economia. A gripe espanhola – que segundo estimativas matou algo entre 30 a 50 milhões de pessoas– não foi um divisor de águas, voltamos a ser o que éramos antes de 1918.
Mas o que há de novo? O mercado em si. Uma grande diferença entre o mundo da gripe espanhola e o de hoje é que em 1918 o mercado era bem menos globalizado e profissional. Ele era uma criança em sua concupiscência por novos negócios e tinha pouca inteligência especializada.
Hoje sabemos que a pandemia é uma commodity de marketing. A gripe espanhola não foi um mercado em si, a Covid é. Interessa saber se esse mercado terá força para se impor e transformar a pandemia em um motor de startups.
De volta ao Carnaval. Agora especialistas afirmam que se pode fazer a festa com máscaras e exigência de atestado de vacina. Eis o fim da picada. O oportunismo credenciado foi longe demais. Nunca viram o que é o Carnaval? Bebe-se muito. Transa-se muito. Nenhuma noção de risco. Ninguém vai usar máscara e ninguém vai pedir atestado de vacina para ninguém.
E mais, com o idiota antivacina do Bolsonaro – todo antivacina é idiota, não só ele –, turistas europeus e americanos sem vacina poderão vir aqui em busca de sexo. Sexo é o que buscam aqui no Carnaval porque as europeias e americanas são umas azedas. Mas tudo bem, porque o Carnaval é uma festa democrática? Na verdade, o Carnaval sempre foi em grande medida turismo sexual para estrangeiros. Pago pela hora ou não.
Mas tudo bem, por que o carnaval é uma festa popular? Os europeus fecham as portas para nós – menos para os nossos ricos –, mas nós abriremos as portas para eles sem que eles tenham tomado vacina?
Há um elemento a mais. Muitos que pregavam o lockdown absoluto neozelandês num país de motoboys e operadoras de telemarketing o faziam porque tinham empregos públicos. Nunca podemos chegar ao padrão neozelandês, mas algum confinamento foi feito e ele era sem dúvida necessário. O comércio agonizou nas quarentenas. Os empregos públicos, não.
Por que justo agora o comércio que ganha com o Carnaval teria aliados entre especialistas? Quem responde essa pergunta de milhões de reais?
A pergunta final é: se estamos nos arrastando, tentando escapar da boca do leão da Covid, por que diabos deveríamos pôr nossas cabeças na boca do leão em nome de uma festa qualquer?
Os políticos, de olho nas eleições, podem sucumbir à pressão em nome da festa democrática. Em matéria de política, quem aposta no pior sempre acerta.
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