Estado da Arte – Jornal Estadão
Em parceria com a Scientiæ Studia, apresentamos Galileu como o primeiro cientista moderno. Um trecho de Galileu e a Nova Física, de Pablo Rubén Mariconda e Júlio Vasconcelos.
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Galileu Galilei
Primeiro cientista moderno
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Ciência e filosofia na obra científica de Galileu
A obra de Galileu Galilei está relacionada a um momento intelectual decisivo para a constituição da modernidade. Presenciamos nesse período o surgimento de uma nova disciplina, uma física-matemática em conformidade com padrões científicos e com uma concepção de ciência inteiramente novos, que passaram a caracterizar uma outra atitude científica diante do mundo, da qual continuamos herdeiros.
Defendemos neste livro que Galileu desempenhou um papel fundamental nessa história e que ele pode ser considerado o primeiro cientista moderno. Sabemos que essa afirmação é controversa, em grande medida, porque não se pode encontrar outra personagem na história da ciência acerca da qual as opiniões difiram tanto, não sendo fácil chegar a uma unanimidade nem mesmo sobre qual teria sido a principal contribuição científica de Galileu ou qual seria, em essência, a marca da sua genialidade.
Apesar dessas dificuldades concernentes à avaliação histórico-crítica da obra científica de Galileu, parece bastante plausível considerar que ele foi o primeiro cientista no sentido que atribuímos hoje ao termo, sentido para o qual o próprio Galileu contribuiu decisivamente. Além do mais, Galileu foi um cientista criativo e consciente do caráter inovador de suas propostas. Esse aspecto nos remete imediatamente à questão de que a obra científica de Galileu, na medida em que revoluciona os próprios padrões científicos, está indissoluvelmente unida à reflexão filosófica, de modo que a análise histórico-crítica de sua obra científica não se pode realizar sem a consideração de seus aspectos filosóficos e, mais ainda, não pode dispensar nem isolar os problemas e teses filosóficos desenvolvidos no interior da investigação científica do grande pisano.
Posto, portanto, em primeiro lugar, que Galileu é primariamente um cientista e que, em segundo, há uma união estreita entre ciência e filosofia em sua obra, podemos aproveitar o momento para discutir qual o tipo de contribuição filosófica que pode ser feita por um cientista.
A esse respeito não parece difícil considerar que Galileu é um daqueles autores que reforçam a convicção de que a ciência e a epistemologia estão em uma relação recíproca que as torna mutuamente dependentes. Essa relação de interdependência foi afirmada por muitos filósofos e cientistas, e particularmente, de modo bastante claro, por Albert Einstein:
A epistemologia sem contato com a ciência torna-se um esquema vazio. A ciência sem a epistemologia é, na medida em que seja possível assim concebê-la, primitiva e grosseira. Entretanto, tão logo o epistemólogo, que procura por um sistema claro, tenha encontrado o caminho em direção a tal sistema, inclina-se a interpretar o conteúdo do conhecimento científico no sentido de seu sistema, e a rejeitar tudo o que não esteja adequado a seu sistema. O cientista, entretanto, não pode incumbir-se de levar tão longe sua busca de sistematização epistemológica… Ele, portanto, deve parecer ao epistemólogo sistemático como um tipo de oportunista inescrupuloso: ele parece ser realista na medida em que procura descrever um mundo independente dos atos de percepção; idealista porque considera os conceitos e teorias como livres invenções do espírito humano; positivista, pois só julga seus conceitos e teorias justificados pelo fornecimento de uma representação lógica das relações entre as experiências sensoriais. Ele pode até mesmo parecer um platônico ou pitagórico, pois considera o ponto de vista da simplicidade lógica como um instrumento indispensável e efetivo para sua pesquisa (Einstein, 1970, p. 684).
É claro que não se pode pretender aplicar, sem ajustes, a afirmação einsteiniana ao caso de Galileu, mas certamente, como mostraremos em nossa biografia, seu espírito permanece válido. Afinal, qualquer pessoa que se dedique à leitura crítica da obra de Galileu nota o papel fundamental desempenhado por suas concepções epistemológicas e metodológicas, embora perceba, também, a completa ausência de um esforço sistemático de reflexão filosófica e epistemológica.
Somos assim levados a afirmar, com base nessa convicção da interdependência entre a ciência e a epistemologia, que Galileu é um filósofo na exata medida em que todo cientista inovador é também epistemólogo e metodólogo. Aquele que contribui para a ciência com novas ideias, concepções e teorias está comprometido com a transformação dos padrões científicos (ou com o seu esclarecimento). A obra de Galileu tem esses dois ingredientes que caracterizam o que se costuma chamar a partir de Kuhn (1975) de “ciência revolucionária”: por um lado, está assentada em uma realização científica forte e decisiva que renova as questões científicas e, por outro lado, envolve a própria ideia do que seja a ciência e o fazer científico.
Nesse ponto é que se revela importante não esquecer que a filosofia de Galileu depende inteiramente de seu programa científico ou, se se quiser, que ela está integralmente dedicada ao estabelecimento da ciência. A ausência de um programa autônomo e sistemático de investigação epistemológica pode conferir-lhe uma aparência de “oportunismo inescrupuloso”, para usar a expressão de Einstein. Afinal, Galileu é, em certo sentido, platônico, atomista, aristotélico etc., em razão de conveniências circunstanciadas por suas investigações e posições científicas. Portanto, ele é tudo isso na defesa de posições claramente circunscritas como científicas.
Tal característica da obra de Galileu é responsável por uma diferença marcante entre sua filosofia e a de outro fundador da ciência moderna, René Descartes cuja contribuição científica é considerada hoje secundária com relação à sua contribuição epistemológica, apesar de suas contribuições decisivas para a óptica e para a matemática. A ausência de uma investigação epistemológica sistemática — e, notadamente, de qualquer tentativa de construir uma fundamentação metafísica para a ciência — proporciona a Galileu uma ampla liberdade nas respostas às questões filosóficas suscitadas por seu programa científico, originando, de certo modo, esse ecletismo filosófico que parece “oportunista”. Tanto é assim que, com frequência, Galileu, em seus pronunciamentos epistemológicos, toma uma ou outra posição tradicional, como o platonismo e o atomismo, e a adapta da maneira mais conveniente para expressar sua concepção de ciência. Desse modo, como fruto desse “oportunismo” e diferentemente de Descartes, é difícil encontrar uma unidade interna no discurso filosófico de Galileu.
Evidentemente, esse oportunismo epistemológico, favorecido pela extrema habilidade retórica de Galileu, cobra seu preço, e Descartes, um ano depois de ter publicado o Discurso & Ensaios, ao comentar o Discorsi de 1638, afirma que Galileu “constrói sem fundamento” (carta de Descartes a Mersenne de 11/outubro/1638). O comentário de Descartes anuncia a direção eminentemente filosófica na qual Descartes embarca rumo ao estabelecimento da subjetividade moderna. Entretanto, os dois tratados científicos que fundam a ciência moderna, proporcionando-lhe marcos distintivos, não apresentam a fundamentação metafísica, mas se assentam ambos em procedimentos experimentais e aplicam a matemática à análise dos resultados da experiência. O estado da ciência em 1637/1638 é o mesmo em Galileu e Descartes; e a direção é claramente a da ciência útil.
Defenderemos neste livro que a principal contribuição filosófica de Galileu possui um caráter eminentemente metodológico, caracterizado, em especial, pelos dois seguintes aspectos:
(1) defesa da autonomia da ciência com base na tese da suficiência do método para decidir acerca da verdade das teorias;
(2) introdução do método experimental e de um novo estilo de sistematização teórica e de exposição que lhe é adequado.
Mostraremos, a seguir, que Galileu não é apenas o fundador da física clássica, com a qual inaugura uma outra maneira de conceber a ciência, mas também é um introdutor do método experimental no estudo dos fenômenos naturais e o inventor de um estilo de sistematização e exposição apropriado a esse método. Com isso, Galileu dá também um passo decisivo na concepção da engenharia moderna.
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As etapas da carreira científica de Galileu
A biografia científica que apresentaremos nas páginas seguintes procura evidenciar a importância de Galileu para a história da ciência e da técnica, avaliando suas contribuições para a fundação da ciência moderna e constituição da mentalidade técnica moderna. Para isso, nossa biografia divide a sua atuação nos quatro períodos seguintes.
(1) O período pisano — 1589 a 1592 — no qual Galileu inicia, na Universidade de Pisa, sua carreira de professor universitário de matemática, desenvolvendo os primeiros estudos sobre os movimentos pendulares e no qual descobre a lei natural da queda dos corpos.
(2) O período paduano — 1592 a 1610 — no qual Galileu se transfere para a Universidade de Pádua, na qual a atuação de Galileu se desenvolve em dois planos. No plano prático, Galileu se dedica aos estudos de mecânica, compondo um tratado sobre máquinas intitulado As mecânicas (Le meccaniche); desenvolve estudos técnicos ligados à aplicação militar com dois tratados sobre fortificações; obtém amplo sucesso com um incisivo programa de instrumentação científica, do qual fazem parte a balança hidrostática, o compasso geométrico-militar e o telescópio; e, no plano teórico, aprofunda sua compreensão físico-matemática do movimento dos corpos com os experimentos dos planos inclinados.
(3) O período polêmico — 1610 a 1633 — caracterizado pela afirmação e defesa do copernicanismo e que se estende do annus mirabilis de 1610, com o anúncio, no Sidereus nuncius, das famosas observações astronômicas por meio do telescópio até a condenação em 1633 pela Inquisição romana em virtude da publicação do Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano (Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo ptolemaico e copernicano). Esse período está, por sua vez, constituído por três fases:
(a) A polêmica teológico-cosmológica — 1610 a 1616 — dividida em duas partes: 1610-1613, etapa de intensa atividade científica e de continuidade das descobertas astronômicas telescópicas marcada pela publicação de História e demonstração sobre as manchas solares (Istoria e dimostrazioni intorno alle macchie solari) 1613-1616, etapa em que se desenvolve a polêmica teológico-cosmológica que culminaria com a condenação do sistema heliocêntrico de Copérnico pela Inquisição romana.
(b) A disputa sobre os padrões científicos — 1616 a 1623 — na qual Galileu combate as posições tradicionais do jesuíta Orazio Grassi. Publica inicialmente em 1618 o Discurso dos cometas (Discorso delle comete) de 1618, e a seguir O ensaiador (Il saggiatore) em 1623.
(c) A defesa científica do movimento da Terra— 1624 a 1633 — a qual compreende uma fase de elaboração do Diálogo (1624-1630), na qual, além de compor a obra, Galileu realiza todas as gestões para obter a autorização para a publicação da obra (1630-1632). Apesar de a obra ser publicada em 1632, suas repercussões se estendem até o ano trágico de 1633 com a condenação de Galileu, que é obrigado pela Inquisição a abjurar sua defesa do movimento da Terra.
(4) O período da retomada da mecânica — 1633 a 1642 — no qual Galileu retorna às investigações mecânicas do período paduano, escrevendo sua obra científica mais importante, Argumentos e demonstrações matemáticas sobre duas novas ciências (Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze). Publicado em 1638, o Discorsi — como nos referiremos a essa obra daqui em diante — contém uma pioneira ciência da resistência dos materiais, que está na base da concepção moderna de engenharia, e o primeiro tratamento clássico dos movimentos de queda retilínea livre ou por planos inclinados e dos movimentos dos projéteis, constituindo a cinemática e dando os primeiros passos para a constituição da dinâmica moderna e da unificação entre a física e a astronomia.
A tese que norteia a interpretação interna da parte científica desta biografia é que a estratégia aplicada por Galileu ao tratamento das questões físicas é fundamentalmente dinâmica. Essa estratégia dinâmica pode ser encontrada na análise do movimento pendular, por exemplo, com a introdução do conceito de momento; no tratamento dado às questões de estática, com as considerações inerciais e virtuais (para as velocidades); na análise do sistema Terra-Lua para a explicação das marés, cuja causa primária é posta na composição dos movimentos de rotação e translação da Terra; e, finalmente, na discussão e estabelecimento da lei da queda dos corpos e nas análises dos experimentos envolvidos (balança hidrostática, pêndulos, planos inclinados) que apontam mais para uma física da energia e menos para a consideração de forças, que são praticamente ausentes em Galileu.
A tese histórica é que Galileu faz um uso fundamental do método experimental na física matemática clássica e sua concepção da ciência já aponta para a íntima conexão entre ciência e técnica bem como para o caráter utilitário dessa conexão. A sua defesa da liberdade da pesquisa científica é também fundamental para a constituição da autonomia relativa (à religião, à política etc.) da ciência, que é elemento indispensável para a constituição dos currículos universitários de ciências naturais e das especialidades técnicas.
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Galileu e a nova física
Autores: Pablo Rubén Mariconda e Júlio Vasconcelos
Editora: Associação Filosófica Scientiae Studia
Ano de publicação: 2020
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