Olaf Scholz assume a chancelaria, nesta quarta-feira, recebendo da antecessora um legado imponente no cenário político internacional
AFP, O Estado de S.Paulo
BERLIM — Depois de 16 anos de poder e ainda com uma popularidade alta, Angela Merkel deixa definitivamente a condução do governo da Alemanha hoje. Aos 67 anos e depois de 5.860 dias de poder, ela cederá o espaço ao social-democrata Olaf Scholz, confirmado no Bundestag, o Parlamento alemão. Por apenas nove dias, a chanceler não baterá o recorde de longevidade de seu mentor, Helmut Kohl (1982-1998).
Para muitos alemães jovens, a chamada geração “Merkel”, não existe outra chanceler além da “Mutti” (mamãe, em alemão), carinhoso apelido que recebeu em 31 anos como política.
Tanto tempo não parece ter abalado sua popularidade. Segundo pesquisa recente do Pew Institute, 72% dos entrevistados, em todo o mundo, confiam nela.PUBLICIDADE
E parece bem longe o ano de 2019, quando a chanceler, à frente de uma grande coligação de direita e esquerda, deu a impressão de ter sido esmagada pela mobilização dos jovens a favor do clima.
O maior desafio de Merkel
Como símbolo do crepúsculo de seu governo, tremores incontroláveis atingiram Merkel durante várias cerimônias oficiais e levantaram dúvidas sobre a capacidade da “quase infatigável” chanceler concluir seu quarto e último mandato.
Mas a pandemia de coronavírus veio. Três quartos dos alemães estão satisfeitos com sua ação à frente do país, de acordo com as pesquisas.
E até mesmo durante a pandemia, houve quem pedisse um quinto mandato — mas a primeira mulher a liderar a Alemanha descartou.
Analistas afirmam que Merkel soube se comunicar, pedagógica e racionalmente, para enfrentar o “maior desafio”, segundo ela, desde a 2ª Guerra Mundial.
Merkel disse que o confinamento a fez lembrar de sua vida na então RDA (República Democrática da Alemanha, comunista), e a levou a tomar “uma das decisões mais difíceis” de seus mandatos.
A pandemia e suas consequências demonstraram mais uma vez o seu pragmatismo e a sua capacidade de mudar de posição para reduzir a tensão política, um sentido de compromisso do chamado “merkelismo”.
Defensora fervorosa da austeridade após a crise financeira de 2008, Merkel se converteu à política de aumento de gastos e perdão da dívida, única coisa, segundo ela, capaz de salvar o projeto europeu.
Em 2011, a catástrofe nuclear de Fukushima, no Japão, convenceu-a rapidamente a iniciar o abandono progressivo da energia nuclear na Alemanha.
Decisões de risco
Mas sua aposta política mais ousada veio em 2015, quando decidiu abrir as portas para centenas de milhares de sírios e iraquianos que pediam asilo. Apesar dos temores da opinião pública, ela prometeu integrá-los e protegê-los.
“Nós faremos!” foi a frase proferida por ela na ocasião, e que ficou marcada como memorável dada a pouca afeição de Merkel por discursos apaixonados.
Até então, a doutora em Química que ainda carrega o sobrenome do primeiro marido e não tem filhos cultivava uma imagem de mulher prudente e até fria, que adora batata, ópera e caminhadas.
Para explicar a sua decisão histórica sobre os imigrantes, tomada sem consultar os seus parceiros europeus, invocou os seus “valores cristãos” e uma certa obrigação de dar exemplos por parte de um país que carrega o estigma do Holocausto.
A caridade cristã de Angela Kasner, seu nome de solteira, vem de seu pai, um pastor austero que voluntariamente foi morar com toda a sua família na Alemanha Oriental comunista e ateísta para pregar.
“Minha herança me marcou, especialmente o desejo de liberdade durante minha vida na RDA”, disse ela no 30º aniversário da reunificação.
Líder do ‘mundo livre’
No entanto, Merkel sempre assumiu sua decisão na crise migratória e, após o terremoto Donald Trump e o Brexit, foi entronizada por muitos como a “líder do mundo livre” em face da ascensão do populismo.
Barack Obama, um dos quatro presidentes americanos que Merkel conheceu desde 2005, a descreve em suas memórias como uma líder “confiável, honesta e intelectualmente precisa” e uma “pessoa bonita”.
Em uma cerimônia de despedida do exército, quinta-feira, a chanceler emblemática reconheceu que esses 16 anos “pediram a ela esforços políticos e humanos”.
E com seu país passando pelo pior momento da pandemia, alertou contra a “fragilidade” da “confiança” na ciência e na política, em uma época de “teorias da conspiração” e “discurso de ódio”.