Editorial
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Gazeta do Povo

O deputado de esquerda Gabriel Boric, eleito presidente do Chile em 19 de dezembro.| Foto: Elvis González/EFE

Em um segundo turno que terminou com vantagem mais larga do que previam as pesquisas de opinião, o esquerdista Gabriel Boric foi eleito o novo presidente do Chile, derrotando por uma margem de mais de dez pontos porcentuais o advogado José Antonio Kast, conservador de direita e que imediatamente reconheceu a derrota, parabenizando seu oponente. A vitória de qualquer um dos dois candidatos já representaria maior afastamento do centro político desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet (à direita, no caso de Kast; e à esquerda, como será com Boric), o que apenas tornará mais desafiadora a missão de reunir uma sociedade que aprofundou suas divisões desde os protestos de 2019.

Com Boric à frente do governo, o Chile certamente embarca em um rumo novo – mas não necessariamente melhor que o anterior. Nas últimas décadas, o país implantou um modelo liberal e de respeito à liberdade econômica que fez do Chile a única nação sul-americana a integrar a OCDE, constantemente figurando entre os líderes no continente sul-americano em IDH, renda per capita e nos rankings da Heritage Foundation e do Banco Mundial. Pesquisa de 2018 da OCDE indicava que, dentre todos os países-membros, o Chile tinha os melhores índices de mobilidade social. Mesmo assim, nem todos os chilenos conseguiram se beneficiar deste modelo, que não conseguiu eliminar a pobreza, nem reduzir drasticamente as desigualdades tão características da América Latina.

Com Boric à frente do governo, o Chile certamente embarca em um rumo novo – mas não necessariamente melhor que o anterior

Ainda que tenha levado o Chile a uma posição invejável, ao menos para os padrões do continente latino-americano, não há dúvidas de que o modelo chileno poderia ser aperfeiçoado, levando o Estado a um papel mais subsidiário, sem no entanto reduzir a liberdade econômica ou apelar para intervencionismos que já têm um histórico de fracasso onde quer que sejam implantados – o caso mais evidente é o dos vizinhos argentinos. Mas não parece ser essa a vontade de Boric.

O candidato vitorioso, da coalizão Aprovo Dignidade – formada por forças políticas como a Frente Ampla e o Partido Comunista –, notabilizou-se pelas críticas ferrenhas ao que chama de “modelo neoliberal”, prometendo que o Chile, depois de ter sido o “auge do neoliberalismo na América Latina”, seria o seu “cemitério”. No segundo turno, para conquistar os eleitores mais ao centro, Boric moderou o discurso: “Jamais disse que estes 30 anos foram perdidos”, afirmou no último debate antes da votação deste dia 19. Mesmo assim, está bem claro que o esquerdista tem em mente não um Estado subsidiário, mas efetivamente grande e provedor.


A vitória de Boric também dá impulso à ala majoritária da assembleia constituinte eleita em maio deste ano, igualmente mais disposta a reverter o modelo atual chileno que em mantê-lo ou aperfeiçoá-lo. A nova carta será apresentada em meados de 2022 e terá de passar por um referendo. Se o segundo turno presidencial contar como uma “prévia” desta futura consulta, é grande a possibilidade de que passe a vigorar no Chile uma Constituição que rejeite a possibilidade de um liberalismo mais atento aos pobres, abraçando de vez o Estado de bem-estar social.

Estamos presenciando o início da “brasileirização” – ou, pior, da “argentinização” – do Chile? Se a prática corresponder ao discurso, certamente. Mas nem sempre isso ocorre, e há a possibilidade de que Boric perceba que seria um grande erro governar apenas para o nicho do qual ele provém; ou, uma vez no governo, ele poderia se tornar mais pragmático, como foi o caso, por exemplo, do petismo quando finalmente passou a realizar leilões de infraestrutura não porque concordasse com eles, mas por perceber (muito a contragosto) que o Estado não era capaz de manter estradas ou aeroportos em condições satisfatórias. Os eleitores de Boric, ou ao menos boa parte deles, espera que o novo presidente jogue fora o bebê junto com a água do banho, enterrando um modelo que, apesar de suas limitações, trouxe crescimento e prosperidade ao Chile. Que o novo presidente tenha a coragem de contrariar essas expectativas mais radicais.


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