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Bruna Frascolla – Gazeta do Povo

| Foto: Brunno Covello/ Arquivo/ Gazeta do Povo

Cruz Machado, na região centro-sul do estado, tem 7% da população beneficiada pelo bolsa familia. Este número é um indicativo alto de pobreza na região. Na imagem, famílias que vivem no morro São José. Expedição Paraná 2014.



Tecnocrata tem uma dificuldade terrível em entender coisas que não cabem em números. Ao meu ver, isso acaba implicando uma desestabilização das sociedades menos baseadas no dinheiro. Estas são automaticamente consideradas pobres, recebem uma injeção artificial de dinheiro e, muitas vezes, este vai encontrar seu destino numa nova área da economia que cresce vertiginosamente desde quando surgiu o Bolsa Família: o tráfico. Com a criação do Bolsa Família teve a substituição do jegue pela moto, que aumenta a capacidade de produção e é uma boa coisa, mas me parece que houve também a explosão do tráfico. Não pretendo dizer que não é pra ter auxílio estatal a gente carente; pretendo chamar a atenção a efeitos ruins que o tecnocrata não costuma enxergar.

O que é pobreza?
Dalrymple costuma apontar que o significado de “pobreza” é alterado de modo a nunca se poder dizer que ela acabou. Ele é um médico inglês aposentado que trabalhava no SUS de lá (o NHS) e em prisões, por isso conhece bem o segmento social que os ingleses chamam de “pobre”, mas que ele prefere chamar de underclass, subclasse. É gente que recebe uma espécie de Bolsa Família e se diz “paga”, mesmo que não trabalhe. Se o Bolsa Família é de inspiração liberal, porém, o Reino Unido tem uma forte tradição socialista no campo da assistência social. Conforme Dalrymple conta, o “pobre” inglês “é pago” pelo Estado e recebe ainda uma habitação estatal já mobiliada e equipada com eletrodomésticos para morar. Os burocratas inspecionam as famílias e dizem quem vai morar onde. Decidem tudo burocraticamente, na acepção pejorativa da palavra. Num dos seus livros (que são editados no Brasil pela É Realizações), ele conta o causo de uma mãe solteira que costumava se envolver com homens violentos. Ela pedia para mudar de apartamento para escapar de um deles, mas a assistência social dizia que não, porque ela já estava alocada no apartamento para o tamanho da família dela. O problema foi resolvido quando, para resolver a questão da alienação parental (criada pela própria burocracia), os burocratas decidiram que todos os pais teriam direito a ficar com os filhos por um período, mesmo que fossem pedófilos ou assassinos violentos. O pai da filha dela ficou com a criança e matou. Aí a burocracia finalmente a mudou de apartamento, já que agora era uma mulher sozinha.

Assim, os “pobres” da Inglaterra levam uma vida que serviria para encher mil programas do Datena, embora vivam em meio à fartura material. Os “pobres” da Inglaterra são “pobres” somente por terem menos dinheiro que alguém. Caso transformemos a pobreza em algo relativo, em vez de absoluto, a pobreza só acabará quando todo mundo tiver a mesma riqueza. Se todo mundo menos Bill Gates fosse tão rico quanto Gisele Bündchen, Gisele Bündchen seria pobre até a aniquilação de Bill Gates.

O mais razoável, para Dalrymple, seria considerar que não existe mais a pobreza entre os cidadãos do Reino Unido. E um tema recorrente em seus textos é como as modas intelectuais da elite têm um efeito devastador sobre o povo. No fim das contas, eles não abasteceriam um eventual Datena por causa de sua pobreza, mas sim por causa de sua degradação moral, possível também em meio à riqueza.

Onde eu quero chegar com isso? Ora, na mentalidade tecnocrática segundo a qual todo problema tem origem na falta de dinheiro. Por que as pessoas roubam comida? Porque não têm dinheiro? Ok. Por que as pessoas contrabandeiam fuzis? Porque não têm dinheiro?! Por que as pessoas compram cocaína pura traficada da Colômbia? É porque não têm dinheiro?! E se o rico tem motivações de ordem espiritual para comprar cocaína pura, por que temos que reduzir à economia os motivos do drogado pobre?

Eu tenho para mim que o cheirador rico e o cracudo pobre partilham dos mesmos valores, e que os valores explicam o estilo de vida de ambos. Já os tecnocratas e um monte de católicos acham que toda a degradação dos pobres advém da pobreza, isto é, da escassez de recursos materiais necessários à sobrevivência.

Um cheirador é um cracudo com dinheiro; um cracudo é um cheirador sem dinheiro.

Riqueza sem dinheiro

Mas uma das coisas que mais me espantam na mentalidade do tecnocrata é a ignorância histórica. Tudo se passa como se Deus tivesse criado o Éden com Adão, Eva, um monte de bicho e cédulas de dólar. Durante a maior parte da história da humanidade, a riqueza vinha do solo, do trabalho rural. Gente sem um tostão furado, mas senhora de terras férteis e de servos, era rica. Impostos medievais como a terça e meação podiam ser pagos “em espécie”, expressão que significava, quando ainda não existiam cartão de crédito nem transferência bancária, pagos com uma fração da própria produção. Pagamento “em espécie” do plantador de beterrabas era pagamento com beterrabas.

A própria moeda surgiu como resultado de um trabalho de extração de riquezas da terra. E o material da moeda poderia ser fundido e guardado em casa como poupança, seja sob a forma de joias, seja como utensílios de cozinha (“a prata da casa”). Tão tarde quanto no século XVIII, David Hume condenava a prática de importar porcelana do Oriente porque, uma vez partida, a riqueza se perdia – bem ao contrário da prata da casa. As joias de crioula usadas pelas sinhás pretas da Bahia no século XIX eram uma poupança ostensível. As pessoas não iam a lojas com dinheiro na mão escolher uma joia; elas amealhavam riqueza em metais preciosos e buscavam um ourives honesto para fundi-los em artefatos. Quando as vacas magras viessem, bastava derreter.

Desde a Idade Média, portanto, a riqueza era sobretudo rural e com pouco dinheiro. Com o excedente da produção do campo e o aumento do comércio, começaram a surgir as cidades (ou burgos), com seus burgueses. A nobreza tinha riqueza em terras; a burguesia tinha riqueza em dinheiro.

Ainda no século XIX, na Itália já industrial, a importância da riqueza em terras era reconhecida. Por isso a burguesia começou a se casar com nobres falidos e assim a se nobilitar. Uma representação famosa desse processo se encontra em Il Gattopardo, romance do príncipe de Lampedusa transformado em filme por Visconti. A famosa frase “é preciso mudar tudo para que nada mude” sintetiza a aliança da nobreza decadente com a burguesia ascendente para se manter por cima da carne seca.

Uma economia diferente
Se um grupo de liberais como Marcos Lisboa chegasse à Idade Média, seria feito um censo para medir em dinheiro as receitas de todo mundo. Ficariam de coração cortado ao descobrir que marqueses, condes, viscondes e duques têm pouco dinheiro; que os camponeses vivem com menos de um dólar por dia. Enviariam um relatório a entidades internacionais revelando a situação de extrema pobreza dos nobres medievais. Por outro lado, os judeus, párias privados do uso da terra, condenados à vida urbana, apareceriam como grandes ricaços e concentradores de renda. Um Bolsa Família levaria dinheiro aos campônios e nobres, às expensas dos burgueses. Mas que diabos o povo do campo faria com o dinheiro?

Ao meu ver, é possível que seja mais ou menos isso o que acontece com as desigualdades regionais do Brasil. A economia da maioria da população nordestina (que não mora nas capitais) se assemelha à economia medieval. Os liberais puxam os cabelos lastimando o pouco dinheiro que o nordestino rural tem, mas não considera o baixíssimo custo de vida que um pequeno proprietário rural tem. Aí pega o dinheiro dos centros urbanos e despeja no sertão. Pra quê?

Bom, as coisas que o campo arcaico não consegue comprar são os bens tecnológicos importantes para a produtividade – como moto, celular, internet, trator – e droga. Veja-se por exemplo esta notícia de um negócio ilegal flagrado pela Polícia Rodoviária Federal: no interior da Bahia, um inadvertido comprou com um porco gordo, pela internet, uma moto roubada. Isso é economia brasileira. No dia em que um tecnocrata entender que esse tipo de operação com pagamento em espécie é uma coisa normal na segunda maior região brasileira, talvez possamos pensar em programas melhores de transferência de dinheiro.

A cocaína é produzida fora do Brasil e só entra à base de dinheiro. Se hoje há crack em qualquer rincão rural do país, isso só foi possível com a chegada do dinheiro a esses rincões. Isso aconteceu com os programas liberais de transferência de renda, que mexeram nessa economia arcaica. Repito que a chegada do dinheiro não implica que todo mundo vá comprar drogas — há quem compre bens de tecnologia, que também só chegam com dinheiro. Mas precisamos abandonar essa mentalidade segundo a qual dinheiro é a melhor ou a única métrica de sucesso humano.


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