Sistema Nacional de Educação
Projeto reforça modelo que pôs o Brasil entre os piores do mundo
Por
Denise Drechsel e Gabriel de Arruda Castro, especial para a Gazeta do Povo

Proposta impede prefeitos, governadores e a própria União de procurar métodos inovadores de ensino| Foto: Albari Rosa / Arquivo / Gazeta do Povo

Um projeto de lei que quer criar o que seus autores chamam de “SUS da Educação” avança na Câmara dos Deputados. Se for aprovado, o Brasil passará a ter o Sistema Nacional de Educação (SNE). Mas o que era para ser um avanço pode prejudicar ainda mais a educação brasileira: a proposta em discussão não segue os preceitos da Constituição, cria uma estrutura nacional de decisões que tira do Ministério da Educação (MEC) a função de induzir políticas de qualidade e impede prefeitos, governadores e a própria União de procurar métodos inovadores de ensino. Além disso, cristaliza o modelo de ensino público de administração estatal, que tem sido responsável por colocar o Brasil entre os piores do mundo em educação. E quem perde são os mais pobres.

O Projeto de Lei Complementar (PLP) 25/19 foi aprovado em 7 de dezembro pela Comissão de Educação da Câmara. A versão que tramita na Casa é um substitutivo elaborado pelo deputado Idilvan Alencar (PDT-CE) com base no texto original da deputada Professora Dorinha (DEM-TO). A parlamentar comemorou a aprovação do projeto na comissão. “Ele vai organizar, desde o município até a União, as responsabilidades das instâncias deliberativas, que hoje funcionam muito bem no SUS”, afirmou Dorinha.

Especialistas em educação, por outro lado, discordam da comparação feita com o Sistema Único de Saúde e afirmam que o Sistema Nacional de Educação é um perigo para a educação brasileira. Para eles, a iniciativa se parece mais com os antigos “sovietes” da União Soviética: conselhos que deliberavam sobre o destino dos recursos de acordo com interesses de grupos específicos, à revelia dos desejos da população. E acreditam que, caso o projeto de lei seja aprovado, por ser fundamentado em falsas premissas – como a ideia de que a educação pública administrada pelo Estado é sempre a melhor opção –, vai impedir a melhoria na qualidade na rede pública de ensino.


O problema da educação pública brasileira não é, prioritariamente, de falta de dinheiro, mas de falhas na gestão escolar. São várias as pesquisas e evidências científicas desse fato. Estudo publicado pelo Banco Mundial, por exemplo, mostra como o Brasil gasta mais que muitos países e têm resultados bem abaixo dos esperados em proporção ao dinheiro aplicado.

A solução já conhecida para esse problema, que aparece de novo no estudo do Banco Mundial, é aplicar os recursos em programas eficientes que seriam aqueles com gestão escolar próxima à empresarial, com indicadores claros de qualidade, sistemas de monitoramento e avaliação do ensino, com suporte técnico e autonomia para os municípios administrarem as escolas. Os autores colocam como exemplo de sucesso no Brasil, seguindo esses parâmetros, a rede pública de ensino de Sobral (CE), que era uma das piores em 2007 e foi considerada a melhor em 2017, com a melhor nota no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).

A questão é que se o Sistema Nacional de Educação existisse no começo dos anos 2000, a Prefeitura de Sobral não teria liberdade para adotar os métodos de gestão e de programa de ensino bem-sucedidos. Isso porque o SNE cria uma Comissão Tripartite responsável por decidir praticamente todas as políticas de educação a serem adotadas, que devem ser replicadas de forma igual em todo o país, com poder de recusar recursos aos entes federativos que não quiserem seguir seus ditames.

Essa Comissão Tripartite seria formada por 15 membros titulares, divididos entre representantes da União, estados e municípios. Na prática, o MEC sempre será minoria em votações, caso não concorde com as pautas de estados e municípios. Os representantes dos estados seriam escolhidos pelo Conselho Nacional de Secretários de Estado da Educação (Consed) e o dos municípios pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), órgãos políticos, muitos deles com contratos com organizações não governamentais (ONGs) – que nem sempre representam os desejos da sociedade brasileira para a educação – e com a presença de sindicalistas. Ou seja, para conseguir recursos para implantar mudanças, o MEC, um prefeito ou governador terá de convencer a maioria dos representantes do Consed e da Undime.

“O espírito da Constituição é que o MEC agiria, por meio de indução, com investimento e capacidade técnica, como uma agência reguladora do sistema. Agora, imagine uma agência reguladora, como a Anatel, por exemplo, com as empresas de telefonia fazendo parte de um conselho tripartite de voto paritário. Sendo que [com a Comissão Tripartite proposta] as duas categorias de entes subnacionais formam maioria sempre, toda vez, são 15 votos, cinco do governo federal, cinco do estado, cinco do município. Ora, se o MEC será sempre minoria em uma votação paritária com representantes de estados e municípios, que em geral são políticos ou sindicalistas, isso acaba com a capacidade de indução de qualidade do MEC”, diz Ilona Becskeházy, doutora em política educacional.

De acordo com a proposta em discussão do SNE, essa Comissão Tripartite também teria outro poder importante e perigoso: o de definir o valor mínimo a ser gasto por aluno por ano e os critérios para a qualidade do ensino (hoje uma prerrogativa dos órgãos federais). O texto estabelece o chamado Custo Aluno Qualidade (CAQ), definido pela Comissão Tripartite, que seria idêntico em todos os municípios brasileiros. Não há problema em tentar dividir melhor os recursos, o risco é entregar nas mãos de uma comissão assim formada a decisão de planos de carreira de professores, de como deve ser a gestão e os gastos, além das resistências desse público em aplicar metas de qualidade. No novo sistema, a União terá de apoiar financeiramente os estados que não conseguirem bancar com o CAQ. “Imagine uma empresa – no caso, o MEC – cujos custos estão em uma planilha fixada em lei e quem fez a lei: sindicatos. Essa proposta do CAQ é uma bomba-relógio financeira”, exemplifica Ilona.

Mas o pior, para o professor Pedro Caldeira, professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro e Diretor de Educação Básica da associação Docentes Pela Liberdade (DPL), é a centralização de decisões essenciais em um grupo de 15 pessoas, sem respeitar a autonomia e as diferenças enormes das diversas regiões do país, sem ampla discussão com a sociedade.

“É um engano pensar que o SNE é o SUS da Educação: o SUS está centrado na prestação de cuidados de saúde a seus usuários. O SNE, tal como foi aprovado na Comissão de Educação da Câmara de Deputados, está centrado no total controle da educação brasileira, básica e superior, por parte de estados e municípios – isto é, em parte ou totalmente controlado por ONGs educacionais e pelos sindicatos de professores. A voz das famílias foi totalmente silenciada, a efetividade dos sistemas escolares não foi tomada em consideração, a definição de objetivos claros e ambiciosos em termos de aprendizagens por parte dos sistemas educacionais nem sequer foi cogitada como algo essencial em um projeto legislativo com tamanho impacto”, salienta Caldeira.

A pior escola para os mais pobres

O cientista político e professor do Insper Fernando Schüler aponta ainda mais um problema na proposta do SNE: a exclusão total do previsto no artigo 213 da Constituição, que os recursos públicos devem ser destinados às escolas públicas “podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas”. Entre outras características, o projeto de lei prevê que todas as contratações sejam feitas por concurso público, o que impede qualquer tentativa de usar vouchers na educação – quando o estado ou município paga uma escola particular para os alunos ao invés de ele mesmo administrar colégios – ou as chamadas escolas “charter”, quando instituições privadas fazem parceria com as esferas públicas para receber alunos.

“O constituinte previu essa possibilidade de parceria, que neste projeto de lei está sendo solenemente ignorada. Não se faz nenhuma referência, em dezenas de páginas, ao fato básico determinado pela Constituição que os gestores municipais e estaduais tenham a opção, em suas redes de ensino, de escolher entre um modelo próprio ou um modelo compartilhado, modelo contratualizado com o setor filantrópico, confessional e comunitário”, explica Schuler.

“Como na discussão sobre o Fundeb, quando não se destinou nem 10% do dinheiro para parcerias com escolas comunitárias, o SNE também não quer nenhum tipo de concorrência do modelo de administração estatal, que não funciona, com qualquer outro tipo de administração”, diz Schüler.

Para o cientista político, caso o texto seja aprovado como está, o ensino público será prejudicado, aumentando ainda mais a desigualdade social entre ricos e pobres.

“É o grande cinismo brasileiro. Todas as pessoas põem os filhos nas escolas privadas e querem empurrar o monopólio estatal, gerido por ONGs e sindicatos, para os mais pobres. Pergunta para as pessoas que defendem o monopólio de administração estatal na educação se eles colocariam o próprio filho na escola pública assim estruturada. Eles defendem o monopólio estatal, a pior solução, para os pobres. Esse é o ponto central, essa é a questão ética central. O resto é variável disso”, afirma Schüler.

Discussão deve ficar para 2022
O projeto de lei tramita em regime de urgência. Mas, antes de chegar ao plenário da Câmara, a proposta ainda precisa do aval de duas comissões da Câmara: a de Finanças e Tributação, e a de Constituição e Justiça e de Cidadania. Se passar por todas essas etapas, o texto será encaminhado ao Senado. Uma eventual mudança na lei só ocorrerá se os senadores referendarem o texto e se, por fim, o projeto for sancionado pelo presidente da República.

Como o calendário de 2021 praticamente encerrado, a dúvida é se os parlamentares terão condições de pautar a proposta em um 2022 que promete ser turbulento devido às eleições presidenciais.


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