Inteligência emocional, criatividade, resiliência, liderança. É possível desenvolver todas essas habilidades
Texto: Nathalia Molina e Fernando Victorino, especiais para o Estadão / Ilustrações: Marcos Müller
Boa notícia para nós, seres humanos. O que ainda pode nos fazer bater as máquinas no processo de automação das empresas já nasceu conosco e pode ser desenvolvido conforme a necessidade: habilidades comportamentais. Resiliência, comunicação, liderança, criatividade, atenção plena e autogestão engrossam a lista das chamadas soft skills. Todas elas são treináveis, afirmam os especialistas no assunto. Ao lado de especializações ou de cursos de extensão em universidades, soluções práticas colaboram para fomentar ou adquirir cada um desses aspectos ausentes ou incipientes.
E foi reforçando o que há de mais humano que médicos conseguiram ter o seu melhor rendimento técnico durante a pandemia. “Nas equipes assistenciais, o espírito de equipe, o relacionamento interpessoal e a colaboração foram fundamentais no enfrentamento da covid-19”, afirma Miriam Branco, diretora de Recursos Humanos da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, que responde pelo hospital e pela instituição de ensino na área de saúde. “Neste mundo Vuca em que estamos vivendo, as habilidades socioemocionais fazem toda a diferença na qualidade e na agilidade das entregas.”
Vuca vem das iniciais em inglês para Volatility, Uncertainty, Complexity and Ambiguity – robôs ainda não sabem responder a situações voláteis, incertas, complexas e ambíguas como esta de pandemia. Miriam completa: “Nas equipes corporativas, no home office, a cooperação e a comunicação assertiva entre as áreas foram essenciais na resolução de problemas”.
Diante de um futuro ainda incerto, a edição de 2020 do Global Human Capital Trends, relatório da Deloitte sobre tendências de capital humano, destaca a resiliência como capacidade fundamental a ser desenvolvida nas equipes. No LinkedIn, um levantamento entre junho e julho de 2020 analisou as habilidades comportamentais e técnicas mais demandadas globalmente, com base nas ofertas de emprego. “A comunicação, que já apareceu em edições anteriores, ganha ainda mais destaque, principalmente quando pensamos no fato de que muitas pessoas estão trabalhando remotamente”, argumenta Milton Beck, diretor-geral do LinkedIn para a América Latina.
QUE HABILIDADES O MERCADO DE TRABALHO PEDE AGORA
● Comunicação
● Gestão de negócios
● Resolução de problemas
● Ciência de dados
● Gestão de tecnologias de armazenamento de dados
● Suporte técnico
● Liderança
● Gerenciamento de projetos
● Aprendizado online
● Aprendizagem e desenvolvimento de funcionários
FONTE: LinkedIn, levantamento de junho a julho
NA PRÁTICA
Não apenas cursos que o profissional busque por conta própria ou faça por indicação da empresa têm o poder de fomentar ou expandir as habilidades comportamentais. “As habilidades comportamentais não são sempre algo que obtemos em um diploma ou certificado”, afirma o diretor-geral do LinkedIn para América Latina. “O profissional interessado em desenvolvê-las precisa investir em treinamentos, convivência com colegas, feedbacks, conversas com mentores e, claro, cursos.”
Voluntariado, intercâmbio e cursos ligados à arte, como fotografia, pintura e teatro, também podem ajudar, complementa Beck. “A vivência é muito importante para o desenvolvimento das soft skills. Portanto, atividades extracurriculares são uma ótima maneira de aprimorá-las.”
São várias as soluções práticas. Sócia-diretora da MBA Empresarial, Sandra Betti dá outros exemplos. “Suponhamos que você não saiba trabalhar em equipe. Se for jogar esportes coletivos, vai desenvolver liderança e visão de conjunto”, indica Sandra. “Artes marciais são excelentes para desenvolver foco e disciplina, e melhorar sua autoconfiança e até combatividade. Outra coisa legal é coral: você aprende a ouvir. Jogar War ou xadrez desenvolve a visão sistêmica.”
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‘Atividades extracurriculares são uma ótima maneira de aprimorar as soft skills’Milton Beck, diretor-geral do LinkedIn para a América Latina
MAIS EMPATIA
A Casa do Saber tem um aplicativo com 135 cursos de diferentes campos, caso de Neurociência e Comunicação Não Violenta. Nele, Claudia Feitosa-Santana, com mestrado em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado em Neurociências Integradas pela Universidade de Chicago, e Flávia Feitosa, com mestrado em Psicologia Social pela London School of Economics and Political Science, trabalham a empatia e a percepção das outras pessoas para alcançar uma comunicação mais eficiente.
Cofundador da startup de recursos humanos Revelo, Lachlan de Crespigny destaca os benefícios desses programas, mesmo os rápidos. “Na nossa plataforma, o profissional que faz cursos mais curtos, de educação não tradicional, recebe duas vezes mais entrevistas na média e tem 30% mais sucesso nas entrevistas”, conta.
Todas essas inovações contribuem também para tornar o profissional capaz de lidar com a diversidade. “Hoje, a gente fala de diversidade como diferencial competitivo. Porque é a coisa certa a fazer e traz resultados para o negócio”, afirma Telma Gircis, gerente regional de Recursos Humanos da Intel na América Latina e no Canadá. “Quando olho para a minha equipe, tenho de ver o que está faltando. Não posso contratar à minha imagem e semelhança.” De acordo com relatório de junho de 2020 da consultoria McKinsey, no Brasil, empresas com mais mulheres em cargos executivos têm 31% mais chances de uma performance financeira maior do que a média.
Nesta entrevista que deu ao vivo para o Sua Carreira, Telma fala como a pandemia mudou os processos seletivos. Ela conta que ficou mais importante haver uma conexão cultural entre o candidato e a empresa que está contratando. Na Intel, o processo de seleção inclui as hard e as soft skills, como a gerente de RH explica na entrevista no fim desta página.https://www.youtube.com/embed/bDCeTFbQLD4?color=white&playsinline=1&rel=0&enablejsapi=1&origin=https%3A%2F%2Fwww.estadao.com.br
TREINE O OTIMISMO
Fundadora do Instituto Feliciência, Carla Furtado conta que nunca trabalhou tanto quanto agora na pandemia. Ela dá curso e faz treinamento em empresas sobre as happiness skills, habilidades relacionadas ao bem-estar.
“Otimismo é treinável. Mas é sentir uma felicidade real, não fantasiosa. Vem de uma mudança no estilo de vida, você vai adquirindo as práticas paulatinamente”, diz Carla, que é professora em cursos de pós-graduação e MBA na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). “A questão da felicidade virou uma grande moda, mas tem de ter muita adesão do indivíduo. Aristóteles dizia que a felicidade não é para os inertes, é para os ativos.”
De acordo com ela, na University of Wisconsin, estudos conseguiram destacar quatro habilidades relacionadas à felicidade: resiliência, que é como se atravessa aquilo que é passível sem adoecer; mindfulness, a atenção plena sem julgar; savoring, a capacidade de apreciar coisas simples ao redor; e generosidade, quando a gente tira a atenção de si mesmo para pôr nos outros, a gente tem um benefício químico. Uma forma simples de começar a trabalhar essas habilidades, recomenda Carla, é praticar meditação ou mindfulness.
BURNOUT E ASSÉDIO
Nas situações em que as habilidades socioemocionais de toda a equipe não são desenvolvidas, a capacidade de lidar com a diversidade fica para segundo plano, as decisões na empresa são tomadas de cima para baixo ou a carga de trabalho é excessiva. Podem, ainda, ocorrer problemas como Síndrome de Burnout e assédio. Segundo os especialistas, esses problemas costumam afetar mais as mulheres e as minorias. E os gestores podem acabar usando o conceito de resiliência de um modo distorcido, com a mentalidade antiga de dizer que a pessoa “não aguenta a pressão”. “No âmbito do trabalho parece que a gente tem de ser resiliente com tudo. Não é isso,porque isso é tóxico”, reforça Carla, do Instituto Feliciência.
Apresentadora de TV, Izabella Camargo passou por isso na carreira (leia mais abaixo) e relatou a experiência no livro Dá um Tempo. Hoje, ela dá palestras sobre o assunto. E foi entrevistada ao vivo no projeto Sua Carreira. Veja um trecho neste vídeo.https://www.youtube.com/embed/CmBu5sgNqu8?color=white&playsinline=1&rel=0&enablejsapi=1&origin=https%3A%2F%2Fwww.estadao.com.br
Izabella diz que o burnout é um nome novo para um problema que foi se intensificando ao longo do tempo. “O burnout é o excesso de estresse por longos períodos”, diz a jornalista. “Das 4 mil pessoas que entrevistei, 98% amam o que fazem e, por isso, não veem problema em botar só o trabalho na agenda.”
A questão é que os limites estão sendo cada vez mais extrapolados, obrigando a pessoa a exigir demais do cérebro. “A única forma de se proteger é reconhecendo os nossos limites. Saber dizer não é treino.”
ENTREVISTA
TELMA GIRCIS
GERENTE REGIONAL DE RH DA INTEL
Profissional deve combinar hard e soft skills
Ter um olhar certo para as soft skill depende de gestores preparados, inclusive para que também estejam atentos a questões de diversidade e de inclusão. Telma Gircis, da Intel, diz ainda que as habilidades técnicas seguem sendo parte importante do currículo.
● É possível analisar um profissional apenas por suas soft skills ou só pelas hard skills? Qual é o peso dessas duas categorias no mercado?
Não. Geralmente, quando buscamos o melhor currículo, olhamos as hard skills, todas as competências técnicas, a educação que essa pessoa teve, o background. No passo seguinte, a entrevista, avaliamos as soft skills. Vamos olhar principalmente para o comportamento que os candidatos trazem em relação à cultura da empresa e qual é o fit desse candidato com ela. É uma combinação dos dois, do hard e do soft.
● Que ferramentas vocês utilizam para identificar soft skills em um candidato?
Treinar muito bem quem contrata. No caso, os gerentes que têm a vaga. Um desses treinamentos é por entrevista de comportamento. O outro é novo na Intel, que é sobre vieses inconscientes e contratação inclusiva. Porque um dos valores da empresa é a inclusão, fazer as pessoas terem esse senso de pertencimento na empresa, para que elas tenham acesso a sistemas justos. Com isso, a gente teve de mudar o nosso sistema de performance. É uma cadeia de coisas com consequência na outra. Por isso, a gente precisa treinar os gerentes para que eles estejam abertos à diversidade, à inclusão.
● Como empresas podem lidar com eventuais brechas que uma pessoa tenha em sua formação, até por questões socioeconômicas?
O aprendizado na nossa empresa é tão importante que mudamos nosso sistema de performance. Agora, a gente fala em três pilares. Temos o pilar de resultado, o pilar de valores – alinhados aos comportamentos que a gente quer estabelecer – e o pilar de learning, de aprendizado. E o que quer dizer? De que forma você aprende, absorve o novo aprendizado e transforma isso em inovação a serviço do negócio, em resultado para a empresa.
ENTREVISTA
IZABELLA CAMARGO
JORNALISTA E ESPECIALISTA EM BURNOUT
‘A única forma de se proteger do burnout é reconhecendo os nossos limites’
A jornalista Izabella Camargo viveu na pele a Síndrome de Burnout, doença associada ao trabalho que foi reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e vai entrar na próxima atualização de sua lista de enfermidades. Hoje, Izabella dá palestras sobre o tema e diz que é importante a pessoa não se negligenciar e saber dizer não, quando necessário.
● O seu caso de burnout ficou notório e você hoje ajuda pessoas na mesma situação. Em que momento notou que era mais do que um cansaço?
Síndrome de burnout é um problema ocupacional como qualquer outro. É um conjunto de sinais e de sintomas. Por isso, não é doença, mas um conjunto de doenças. Não é de um dia para o outro. Ninguém acorda um dia e diz ‘ah, estou com burnout’. No meu caso, foram dois anos acumulando 28 problemas de saúde, passando por 6 especialistas. Eu fazia tudo para voltar a trabalhar. A síndrome de burnout é o fenômeno ocupacional por excesso de estresse, cobranças, prazos impossíveis de serem cumpridos, falta de condições no ambiente de trabalho para que você realize aquilo que você iria fazer. Quanto mais conversarmos sobre isso, melhor. O último número que tenho, da USP, é de 20 milhões de brasileiros com esse diagnóstico, um dado muito subnotificado, como ocorre em casos de violência contra a mulher.
● Assédio moral ou sexual pode piorar um quadro de burnout?
Sim. Toda pessoa que vive uma experiência com a síndrome de burnout viveu algum tipo de assédio moral.
● O que nos protege da síndrome de burnout, de uma situação de assédio?
A proteção começa dentro, não fora. Se você está trabalhando em um ambiente hostil e percebe que faz parte da cultura da empresa, você tem de se cuidar muito mais. Primeiro, coloque-se na agenda. Faça uma lista de prioridades e veja o que é essencial para você conseguir fazer aquilo que está no seu escopo de trabalho. Se você não se cuidar, você não se protege. Outra coisa é não se negligenciar. A definição oficial de burnout é uma síndrome causada pelo esgotamento profissional. A definição da Izabella é: ausência de si mesma. A única forma de se proteger do burnout é reconhecendo os nossos limites.
ENTREVISTA
MARINA GANZAROLLI
ADVOGADA E IDEALIZADORA DO ME TOO BRASIL
‘Ameaças e pressão desnecessária podem facilitar burnout’
A Síndrome de Burnout pode estar associada a situações de assédio moral ou sexual no ambiente de trabalho, diz a advogada Marina Ganzarolli, idealizadora do Me Too Brasil. Ela fala em atitudes como pressionar por prazos desnecessariamente, dificultar o trabalho da pessoa e fazer críticas em público, entre outras. Marina também afirma que não é possível justificar excessos como sendo “inabilidade” da chefia. Confira:
● Por que ouvimos cada vez mais os termos burnout, assédio e ambiente tóxico? São problemas que se intensificaram ou há mais espaço para conversar e estamos mais atentos?
Acho que são novos nomes para problemas antigos, mas também problemas que se somam com novas roupagens. Da mesma forma que havia desgaste, burnout e assédio moral no ambiente de trabalho há muito tempo, não existia o imediatismo das respostas via mensagens instantâneas. A cobrança que acompanha a pessoa o dia todo, porque o celular anda conosco. A dinâmica do trabalho mudou, mas os problemas seguem sendo os mesmos. Os limites do politicamente correto hoje são mais discutidos, o que não significa que, diante de uma cobrança assediadora, de uma piadinha discriminatória, as pessoas antigamente não se sentissem mal, não ficassem traumatizadas. Talvez a gente não soubesse nomear o que havia de errado naquele contexto.
● O assédio moral é algo intencional ou há situações em que há uma inabilidade da chefia?
O assédio é uma conduta totalmente deliberada. Se a pessoa não teve nenhum treinamento para fazer uma gestão humana, produtiva, que incentive as pessoas em vez de diminuí-las, então ela não tem vocação para desempenhar aquela função. Não posso dizer que é uma inabilidade, porque você não machuca uma pessoa de forma não-deliberada. ‘Ah, mas ele é assim com todo mundo’, dizem. Minha resposta é: ‘Bom, então ele assedia moralmente toda a equipe’. Se a conduta se reproduz com todos, é ainda pior. Não dá para desculpar pela inabilidade, pelo ‘jeito’ de alguém. Até porque a gente sabe que tem características de leitura de gestão que estão ligadas ao gênero, à raça. O homem que fala de forma grosseira é assertivo, a mulher é destemperada, histérica. É preciso ter cuidado com essas naturalizações do comportamento porque elas sempre são carregadas de vieses e preconceitos.
● As mulheres são vítimas em todas essas situações?
Estatisticamente, sim. Nos casos de assédio sexual, mais de 90% das vítimas são mulheres. No assédio moral, são pouco mais de 50%, mas isso varia de país para país. Claro, são números de estudos acadêmicos, muitos casos são subnotificados. O ambiente de trabalho não está apartado da sociedade de forma geral. Existe uma desigualdade de poder entre homens e mulheres na nossa sociedade. Hoje, elas são mais escolarizadas do que os homens no Brasil, mas ainda ocupam poucos cargos altos em empresas.