Sacrifícios humanos

Por
Paulo Polzonoff Jr. – Gazeta do Povo

As mesmas pessoas que passaram a festa de Réveillon desejando muita paz em 2022 começaram o ano torcendo pela morte do presidente.| Foto: Reprodução/ Twitter

Primeiro dia útil de 2022. Acordo animado (como sempre), apesar do cansaço (como sempre). Uma vez tomados o banho e o café (não ao mesmo tempo, lógico), me sento à mesa de trabalho – aquela que antes da virada do ano prometi usar com mais assiduidade e disciplina. “Espelho meu, espelho meu, sobre o que escreverei neste dia em que Curitiba está mais quente do que terra de pigmeu?”, pergunto, abrindo a caixa de Pandora com processador Intel Core i5 que ora uso.

Trinta segundos mais tarde, preciso segurar a cabeça com as mãos. Essas pessoas que estão por aí a desejar a morte alheia são as mesmas que há apenas dois dias estavam trocando votos de muita paz, saúde e prosperidade? São as mesmas que se reuniram ao redor da mesa farta e prometeram a si mesmas se tornarem pessoas melhores no ano vindouro?

Mas não vou escrever sobre isso!, decidi na hora, levantando a cabeça de repente e encontrando diante de mim uns olhos azuis felinos cheios de interesse. Afinal, o que teria eu a dizer, Catota?! Adjetivos como absurdo, inaceitável e lamentável são sobretudo inúteis. E, no mais, não me sinto nada à vontade no papel de castrador dessa pulsão de morte aí. Até porque já bebi desse cálice cheio de fel e é bem possível que, num passado nem tão remoto assim, eu também já tenha torcido pela morte de alguém.

(Vou fazer uma pausa aqui enquanto você vai lá nas minhas redes sociais e procura. Pronto? Ótimo. Se você me encontrou em algum momento desejando a morte de alguém, peço mil desculpas. E espero que meu desejo não tenha se concretizado. Se não encontrou, ufa! Mas sou obrigado a reconhecer que isso me surpreende. Afinal, infelizmente não foram poucas as vezes em que me deixei levar pela porção mais abjeta do meu caráter).

Psicanálise de botequim
Melhor do que ficar aqui me escandalizando ou agitando a bengala imaginária no ar e repreendendo as pessoas por manifestarem esses desejos sórdidos é tentar entender o que leva alguém a pensar que a morte de uma liderança política, neste caso o Presidente da República, será capaz de resolver nossos problemas. Será que, apesar de todo o discurso iluminista e de todo o materialismo dialético, no fundo ainda acreditamos em sacrifícios humanos capazes de apaziguar os deuses?

Além de imoral, o desejo de morte dessas figuras revela que o debate público está dominado por adultos infantilizados, daqueles que acreditam que basta fechar os olhos para o bicho-papão desaparecer. Digamos que Bolsonaro morresse em decorrência dessas sequelas da facada de que foi vítima em 2018. O país seria um lugar melhor no dia seguinte? Um lugar mais pacífico, talvez? Você teria se tornado uma pessoa melhor? Uma pessoa mais feliz, talvez?

(Se sua resposta à última pergunta foi honestamente positiva, deixo aqui mais esse biscoitinho para a sua futura degustação: será que você não está depositando a sua felicidade nas palavras e atitudes de outra pessoa simplesmente porque agir assim é mais fácil? Ou, para usar um viés mais jordanpetersoniano, será que você não está dando poder demais a essas pessoas que você tanto odeia?).

Mais do que da explicação religiosa, gosto da ideia psicanalítica das redes sociais como uma tela sobre a qual inadvertidamente as pessoas projetam suas neuroses. Neste caso, desejar a morte de outra pessoa nada mais é do que desejar a própria morte, partindo da crença de que nosso fim haveria de contribuir de alguma forma para o bem-estar daqueles que nos cercam. Ou seja, há muito auto-ódio nas expressões de ódio; há muita culpa também. Qualquer psicanalista de botequim sabe disso. Pelo menos foi o que me ensinou o doutor Tonhão do Bar Rabás.

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