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Bruna Maestri Walter e Marcela Mendes
| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
Uma proposta de reforma trabalhista elaborada por especialistas a pedido do governo federal prevê uma série de alterações que estão gerando controvérsias. O estudo propõe, entre outras mudanças, um regime alternativo à CLT, a liberação de trabalho aos domingos, a legalização do locaute – a “greve de patrões” – e a blindagem de bens pessoais de sócios da execução de dívidas trabalhistas. Reportagem de Célio Yano traz detalhes da proposta.
Mercado de trabalho
Novo regime, locaute, mudanças no FGTS: a reforma trabalhista encomendada pelo governo
O número de empregados com carteira de trabalho assinada no setor privado foi de 33,9 milhões de pessoas, crescendo 4,1% em comparação com o trimestre anterior e 8,1% maior em relação ao mesmo período de 2020.| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Uma proposta de reforma trabalhista elaborada por especialistas a pedido do governo federal prevê uma série de alterações que estão gerando controvérsias. O estudo propõe, entre outras mudanças, um regime alternativo à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a liberação de trabalho aos domingos, a legalização do locaute – a “greve de patrões” – e a blindagem de bens pessoais de sócios da execução de dívidas trabalhistas. Também são sugeridas a limitação no poder da Justiça do Trabalho, a vedação expressa ao vínculo empregatício de motoristas de aplicativos e o fim da multa de 40% do saldo do FGTS em caso de demissão sem justa causa.
O relatório foi elaborado pelo Grupo de Altos Estudos do Trabalho (Gaet), criado em setembro de 2019 com o objetivo de avaliar o mercado de trabalho brasileiro e propor a modernização das relações trabalhistas. Integram a comissão ministros, desembargadores e juízes do trabalho, procuradores, economistas, pesquisadores, advogados e outros especialistas no tema.
Entregue ao Conselho Nacional do Trabalho no fim de novembro, o documento, de 262 páginas, sugere a criação de 110 dispositivos legais, alteração de 180 e revogação de 40, por meio de projeto de lei e de proposta de emenda à Constituição (PEC). O documento é dividido em quatro capítulos, formulados por comissões distintas para cada um dos seguintes eixos: economia e trabalho; direito do trabalho e segurança jurídica; trabalho e previdência; e liberdade sindical.
Os subgrupos foram coordenados respectivamente por Ricardo Paes de Barros, professor do Insper e ex-integrante do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea); Ives Gandra Martins Filho, ministro e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST); Felipe Mêmolo Portela, procurador-federal na Advocacia Geral da União; e Hélio Zylberstajn, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo (USP).
O documento não é um projeto legislativo, mas deve servir de base para a construção de uma proposta de reforma. O governo faz questão de destacar, em todas as páginas do relatório, que o trabalho “não exprime, necessariamente, o ponto de vista do Ministério do Trabalho e Previdência ou do governo federal”.
“Os subsídios apresentados podem ser relevantes para o debate público. São sugestões que, além de ajustes estruturais, podem se inserir na discussão de retomada do mercado de trabalho, com mais segurança jurídica para empregados e empregadores”, diz nota divulgada pelo ministério.
Confira a seguir um resumo de alguns dos principais pontos sugeridos pelo Gaet.
Regime trabalhista simplificado
Entre os itens que se destacam no relatório do grupo de direito do trabalho e segurança jurídica está uma proposta de alteração no artigo 7.º da Constituição, que dispõe sobre os direitos dos trabalhadores, como seguro-desemprego, FGTS, salário mínimo, décimo terceiro, férias, aviso prévio, etc.
A sugestão do Gaet é acrescentar um dispositivo que permita a contratação sob um regime trabalhista simplificado, alternativo ao celetista e no qual os direitos e obrigações seriam definidos em lei específica à parte.
O grupo ressalta que seria facultativo ao empregado eleger esse novo regime de contratação por meio de acordo individual. “Permite-se com isso que o trabalhador tenha voz no estabelecimento das regras que regerão sua própria vida e seja o juiz do que é melhor para si diante de cada situação concreta, observados os limites constitucionais de indisponibilidade”, diz o documento.
Liberação de trabalho aos domingos
Hoje, a Constituição diz que é direito de todo trabalhador “repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos”. O artigo 386 da CLT prevê que, na necessidade de trabalho nesse dia da semana, como em atividades essenciais, é necessário que haja uma escala de revezamento, com descanso em pelo menos um domingo ao mês.
A proposta dos especialistas do Gaet é alterar o artigo 67 da CLT, mantendo assegurado o descanso semanal de 24 horas consecutivas, porém sem vedação ao trabalho em domingos, “desde que ao menos uma folga a cada sete semanas do empregado recaia nesse dia”.
“Hoje, para trabalhar aos domingos e feriados é necessário: estar na lista de atividades autorizadas pela Secretaria Especial do Trabalho, ou possuir autorização de entidade sindical, mediante convenção ou acordo coletivo. Além disso, em caso de atividades comerciais deverão ser respeitadas as legislações municipais”, explicam os autores da proposta.
“Cada vez mais, as pessoas esperam que as empresas atendam suas expectativas de bem-estar, moldando seus serviços e horários de atendimento às suas necessidades. Dessa forma, a mudança da regulamentação legal do trabalho aos domingos e feriados pode trazer benefícios para os níveis de emprego”, dizem. “Com maior produtividade e competitividade, haverá aumento no quadro de trabalhadores e concessão de melhores benefícios.”
Proibição de vínculo empregatício a motoristas de aplicativos
Outro destaque no rol de alterações nas leis trabalhistas é a previsão de um artigo que disponha expressamente que “não constitui vínculo empregatício o trabalho prestado entre trabalhador e aplicativos informáticos de economia compartilhada”.
A previsão englobaria motoristas de transporte individual e entregadores de comida que trabalham sob a demanda de sistemas para celular, como Uber, 99, iFood e Rappi, que, assim, não teriam acesso aos direitos previstos na CLT. Esses profissionais não atuam com carteira de trabalho assinada, mas há decisões judiciais que reconhecem o vínculo.
“Tal dispositivo busca reduzir a insegurança jurídica sobre o tema, além de exemplificar hipóteses de efetiva subordinação, para superar a discussão jurídica atualmente em voga”, justificam os especialistas.
Em outro trecho do relatório, é atribuído às “decisões de reconhecimento de vínculo” o potencial de “acabar com tal modalidade organizativa do trabalho humano, desatendendo às necessidades de milhões de trabalhadores.”
Salário básico como referência para adicional de insalubridade
Uma das medidas que beneficiam o empregado é a previsão de utilização de seu salário básico, sem acréscimos, como parâmetro para o adicional de insalubridade – e não mais o salário mínimo, como é hoje.
Sobre esse referencial, o exercício de trabalho em condições insalubres, acima dos limites de tolerância estabelecidos pelas autoridades competentes, asseguraria a percepção de adicional de 40%, 20% ou de 10%, dependendo da classificação em grau máximo, médio ou mínimo, respectivamente.
A redação proposta prevê, porém, que as condições podem ser alteradas em “ajuste individual, acordo ou convenção coletiva de trabalho”.
Correção de créditos trabalhistas pelo IPCA-e
O texto propõe ainda a utilização do Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-e) como referencial para correção monetária de débitos trabalhistas. Atualmente a legislação prevê que a atualização seja feita pela Taxa Referencial (TR) acrescida de juros moratórios de 1% ao mês, ou 12% ao ano.
Os autores da proposta colocam a mudança como um dos itens que beneficiam o trabalhador. Como a TR está zerada há anos, no entanto, muitas decisões na Justiça do Trabalho já utilizam o IPCA-e como fator de correção, porém somando-se ao índice os juros mensais de 1%. Sem os juros, dependendo do índice inflacionário, a correção pode acabar tendo resultado inferior ao que teria conforme as regras atuais.
Limitação de execução de bens pessoais para pagamento de dívidas trabalhistas
Atualmente sócios de empresas que devem verbas trabalhistas podem ter seus bens pessoais executados para pagamento de dívidas. O Código Civil autoriza a medida apenas em casos de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial, mas muitos juízes do trabalho determinam o bloqueio do patrimônio dos empresários com base em um dispositivo do Código de Defesa do Consumidor (CDC), mais abrangente.
De acordo com o CDC, a personalidade jurídica pode ser desconsiderada em casos de “abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos do contrato social”, além de casos de “falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.
A proposta é restringir expressamente a execução de bens pessoais dos sócios apenas para os casos previstos no Código Civil. “Por razões mais que evidentes – em especial o incentivo ao empreendedorismo e consequente estímulo à criação de empregos – seria conveniente e oportuno que os mesmos pressupostos fossem igualmente observados, no âmbito trabalhista, para reconhecimento da responsabilidade dos sócios sobre créditos trabalhistas reconhecidos em juízo”, diz a justificativa ao dispositivo.
Para Camilo Onoda Caldas, advogado trabalhista e sócio do escritório Gomes, Almeida e Caldas Advocacia, a mudança deve ter grande impacto nas demandas judiciais na esfera trabalhista.
“É muito comum que os trabalhadores só recebam quando tem uma responsabilidade dos sócios. Ou seja, haveria uma massa, que eu não consigo estimar em números, não vou me arriscar no milhão, mas posso dizer que é de centenas de milhares de pessoas que jamais teriam recebido valores de reclamações trabalhistas se a responsabilidade ficasse limitada apenas à empresa”, diz.
Legalização do locaute
No capítulo sobre liberdade sindical, chama atenção à proposta de legalizar, em equivalência ao direito de greve de trabalhadores, a prática de locaute, paralisação das atividades promovida pelos empregadores como medida de pressão em negociações coletivas. A mudança seria feita via proposta de emenda à Constituição, que incluiria a prática no caput do artigo 9.º.
“A legalização do locaute só aumenta o poder patronal sobre o empregado”, avalia o advogado Camilo Onoda Caldas. “Não tem lógica pensar que vá gerar qualquer impacto positivo na atividade econômica”, diz.
Coordenador do grupo responsável por propor a medida, Hélio Zylberstajn explica que o objetivo é conferir às empresas a mesma “arma” de pressão em caso de um impasse em meio a uma negociação.
“É um direito dos trabalhadores suspender a oferta de trabalho por meio de uma greve. Em uma negociação soberana, nós achamos que cabe à empresa suspender o contrato de trabalho”, compara. “O que isso vai provocar? Vai ficar muito menos frequente o impasse. A força equivalente nos dois lados vai estimular o acordo, o consenso.”
Unidade de negociação no lugar de sindicatos de categorias
Também é proposto o conceito de unidade de negociação, que funcionaria como entidade representativa de um grupo de empregados, como os sindicatos, porém sem a unidade por categoria profissional. “Os empregados de uma empresa podem ser uma unidade de negociação, de um grupo de empresas, de um pedaço da empresa. Ou um setor inteiro”, explica Zylberstajn.
“Não se trata de sindicato patrocinado por empresa, como estão dizendo. O que estamos propondo é a liberdade sindical”, diz. “Acaba a ideia de categoria, o que mexe profundamente com a estrutura atual”.
Conforme a proposta, caso haja mais de um sindicato que represente um grupo de empregados, terá predomínio a entidade que tiver o maior número de associados entre os funcionários.
Limitação à Justiça do trabalho
Hoje é comum que entidades representativas de categorias trabalhistas recorram à Justiça do Trabalho quando entendem esgotadas as possibilidades de negociação com o empregador, deixando a cargo do juiz a determinação de um acordo.
A comissão de liberdade sindical propõe vedar à Justiça do Trabalho a definição de cláusulas sociais e econômicas nos conflitos coletivos de trabalho. Assim, competiria aos juízes do ramo apenas processar e julgar “ações que envolvam abusividade no exercício do direito de greve e locaute”.
Assim, a Justiça do Trabalho ficaria limitada a dizer se uma greve ou locaute é ilegal e garantir um porcentual mínimo de trabalhadores em atividade. Em caso de impasse na negociação coletiva, as partes poderiam recorrer a “procedimentos de mediação e arbitragem”, segundo o texto.
Zylberstajn explica que a intenção é promover uma alteração em todo o sistema de negociação: “Nesse caso, as duas partes, em comum acordo, partem para um sistema pleno de negociação. O estado continua a fiscalizar o cumprimento do que foi combinado e a solucionar o descumprimento”.
Fim da multa do FGTS ao empregado e mudanças no seguro-desemprego
Consta do anexo do grupo de economia do trabalho a proposta de unificar o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e o seguro-desemprego em uma espécie de poupança precaucionária individual.
Em vez de receber o seguro-desemprego após ser demitido, o empregado teria os recursos depositados nesse fundo individual nos primeiros meses de trabalho, o que, segundo os idealizadores do modelo, incentivaria o trabalho e a formalização.
Quando desligado, o trabalhador poderia fazer saques mensais limitados desse fundo. Com a proposta, seria extinta a multa em caso de demissão sem justa causa ao empregado, ficando o encargo integralmente devido ao governo.
Sindicatos rechaçam proposta de reforma trabalhista
Tão logo foi tornado público, o estudo foi criticado por organizações de trabalhadores. Presidentes de seis centrais sindicais divulgaram uma nota conjunta repudiando a proposta, que classificaram como “indecente”.
“Trabalharam mais de dois anos sem assegurar o diálogo social e a participação dos trabalhadores por meio de seus sindicatos, federações, confederações e centrais sindicais. Agora, propõem mudanças imensas na legislação trabalhista, de novo em prejuízo da classe trabalhadora. Ao invés de modernizar estão restabelecendo a mentalidade da República Velha, a perversa lógica escravista, e o predomínio da força ao invés do entendimento nas relações de trabalho”, diz trecho do texto.
Assinam a nota Sergio Nobre, da Central Única dos Trabalhadores (CUT); Miguel Torres, da Força Sindical; Ricardo Patah, presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT); Adilson Araújo, da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB); Moacyr Auersvald, da Central Sindical de Trabalhadores (CST); e Antonio Neto, da Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB).
Para Camilo Onoda Caldas, do escritório Gomes, Almeida e Caldas Advocacia, a maior parte das alterações propostas são pequenas e pontuais. Ele chama a atenção para dois dispositivos que podem vir a ser questionados na Justiça caso venham a ser aprovados pelo Legislativo.
“Uma das ideias centrais é tentar criar uma espécie de uma subcategoria dos trabalhadores, colocando a possibilidade de eles terem uma legislação menos protetiva. Isso seria feito por meio de uma emenda que não corte diretamente esses direitos, mas que permita que eles sejam cortados em uma lei ordinária”, diz. “Com 100% de certeza isso vai para o Judiciário. Não tem possibilidade de uma emenda dessa envergadura não ser questionada”, considera.
Outra mudança que, para o advogado, não deve surtir efeito é a previsão de que trabalhadores que prestem serviço por meio de aplicativos não têm vínculo empregatício com a operadora da plataforma. “O que determina se existe ou não vínculo empregatício são os requisitos de um contrato de trabalho, que são onerosidade, habitualidade, subordinação e pessoalidade”, explica.
“Se a pessoa preencher esses requisitos, é empregada. Se não preencher, não é. Então não adianta eu escrever na lei que quem trabalha por aplicativo não é. Se eu criar um aplicativo cuja dinâmica de funcionamento contenha esses requisitos, ele é empregado. O aplicativo é só um meio”, diz o advogado.
Pedro Maciel, sócio da Advocacia Maciel, considera que a proposta servirá para levantar discussões. Ele também considera negativa a ideia de se descaracterizar o vínculo empregatício com aplicativos de economia compartilhada. “Não seria a melhor opção, por mais que se dê maior segurança às empresas e não exclua a caracterização de fraude, tendo em vista as diferenças de cada aplicativo”, diz.
Ele considera ainda um retrocesso a possibilidade de trabalho aos domingos sem pagamento em dobro por período superior ao previsto na lei.
Caldas vê com bons olhos, por outro lado, a mudança no índice de correção das reclamações trabalhistas. “É uma mudança que pode ser favorável aos trabalhadores”, afirma.
O advogado vê com ceticismo, no entanto, o benefício das propostas para o mercado de trabalho do país. “É quase um jargão as pessoas dizerem que as relações trabalhistas são muito engessadas, a CLT é velha, a legislação é atrasada, precisa ter menos direitos para a economia crescer mais. Houve a reforma de 2017 e não há qualquer estudo que diga que, por causa das mudanças, houve um efeito positivo na economia.”
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