Para onde vai a verba?

Por
Renan Ramalho – Gazeta do Povo
Brasília

Sessão de votação do pedido de perda de mandato do deputado afastado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) Data: 12/09/2016

Advogados de Eduardo Cunha dizem que todo o processo deve ser anulado, o que inclui sequestro de bens| Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados

A série de decisões proferidas em 2021 que anularam condenações no âmbito da Lava Jato e em outras operações contra a corrupção tem despertado dúvida sobre o que ocorrerá com valores cobrados dos condenados nas sentenças. Advogados e procuradores ouvidos pela Gazeta do Povo dizem que a eventual devolução para os réus desses recursos, que a Justiça havia entendido serem fruto de corrupção, depende de cada caso e de suas peculiaridades. Os primeiros dizem que os réus que conseguiram anular as condenações têm direito de receber tudo de volta. Já membros do Ministério Público tentam evitar que o dinheiro volte para eles usando uma série de argumentos jurídicos.

A incerteza decorre da particularidade dos casos. Em algumas situações, como a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu a incompetência da 13.ª Vara Federal de Curitiba (a primeira instância da Lava Jato) também anulou as condenações que haviam sido impostas nos casos do tríplex de Guarujá e do sítio de Atibaia, por exemplo.

Já em outros casos, a declaração de incompetência não levou à anulação automática das condenações. Isso ocorreu, por exemplo, na decisão do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF-1), em 7 de dezembro, que retirou da Justiça Federal de Brasília, e enviou para a Justiça Eleitoral do Rio Grande do Norte, o processo no qual os ex-presidentes da Câmara Eduardo Cunha e Henrique Eduardo Alves haviam sido condenados por fraudes na Caixa Econômica Federal.

Nesse caso, caberá ao novo juiz do caso reavaliar os atos decisórios que foram assinados pelo juiz federal, havendo a possibilidade de ratificação das decisões.

O mesmo ocorrerá com o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral – ainda em dezembro, a Segunda Turma do STF decidiu que a 7.ª Vara Federal do Rio de Janeiro, do juiz Marcelo Bretas, não tinha competência para julgá-lo. Aqui, também caberá a outro juiz federal reavaliar o processo.

Em todos esses casos, as condenações previam pagamento de reparações e multas por causa da corrupção. Lula, por exemplo, foi condenado a pagar mais de R$ 5,6 milhões nos processos do tríplex e do sítio. A sentença contra Cunha o obrigava a pagar R$ 7 milhões e Alves a pagar mais R$ 1 milhão. Cabral devia ao menos R$ 320 mil.

Prescrição é o ponto que mais gera dúvida na devolução de bens

Nessas sentenças, a Justiça sequestra os bens do condenado, geralmente de uma quantia muito maior, retendo-a numa conta judicial para que, ao final do processo, no trânsito em julgado (esgotamento dos recursos) ocorra a quitação da dívida, no caso de manutenção da condenação.

A dúvida surge quando ocorre a prescrição, tendência na maioria dos casos em que o processo teve de retroceder ou mesmo voltar à estaca zero, como nas ações contra Lula.

A situação de ex-presidente teve uma resolução mais rápida: em novembro, por 3 votos a 1, a Segunda Turma do STF determinou o desbloqueio dos bens. A medida havia sido mantida pelo juiz Luiz Antônio Bonat, substituto de Sergio Moro na Lava Jato, em março, mesmo após a anulação das condenações e remessa dos processos para Brasília, determinada pelo STF naquele mesmo mês. O objetivo era garantir o pagamento das multas caso houvesse nova condenação em Brasília.

Nos demais casos, esse bloqueio de bens foi mantido, para aguardar o desfecho das ações no novo juízo que cuidará dos processos. E é nesse ponto que se dá o imbróglio.

Quanto mais tempo o juiz demora para reavaliar o processo e decidir, maior é a chance de prescrição, quando o Estado perde o direito de punir um réu pela passagem do tempo. E nessa hipótese, a restituição dos bens ao réu se impõe. Mas, para evitar que o juiz convalide os atos do magistrado declarado incompetente, defesas dos réus têm alegado que todos eles devem ser anulados.

É o que diz o advogado Marcelo Leal, defensor de Henrique Eduardo Alves. Ele entende que todo o processo de um réu deve ser anulado quando o juiz que o instruiu é declarado incompetente. “A consequência lógica é anulação, porque a regra é anular atos decisórios. Vai ter uma discussão sobre quais atos”, diz.

Se todos os atos do juiz incompetente forem anulados, isso incluirá não só a sentença condenatória, mas também o recebimento da denúncia. Os dois atos são marcos interruptivos do prazo de prescrição. Quando eles são anulados, o prazo passa a contar desde a data do fato pelo qual o réu foi acusado. A anulação desses dois atos do processo, portanto, torna mais fácil a prescrição, a extinção da punibilidade e, assim, a devolução dos valores para os réus.

É o que sustenta o advogado Aury Lopes Jr., que defendeu Eduardo Cunha no processo da Caixa. Ele cita o artigo 117 do Código de Processo Penal, que diz que “o sequestro será levantado se for julgada extinta a punibilidade”. “Pode ocorrer a prescrição? Pode. É o preço a ser pago pela incompetência deles e má-fé deles em manipular a competência”, diz.

O que diz o Ministério Público
Para alguns procuradores, no entanto, é possível ao Ministério Público tentar reter os bens de um réu em outra ação, de natureza cível, de ressarcimento ao Estado. É o que pensa o procurador de Justiça e professor de direito penal Rodrigo Chemin, do MP do Paraná. Ele cita o artigo 37, parágrafo 5.º, da Constituição Federal, que diz que esse tipo de ação não prescreve, quando se constata o dano aos cofres públicos num crime contra a administração pública.

Chemin afirma, no entanto, que para isso seria necessário que os tribunais criassem uma jurisprudência para assegurar esse pagamento. “O problema maior é o elevadíssimo grau de discricionariedade. É impressionante como oscila a interpretação, gerando insegurança jurídica enorme. Sempre se acha brecha para nova interpretação”, diz.

O procurador regional da República Bruno Calabrich, que já atuou no grupo de trabalho da Lava Jato na Procuradoria Geral da República (PGR), ressalva, porém, que não cabe apresentar uma ação do tipo no caso de desvios da Petrobras – por ser uma sociedade de capital misto, seu patrimônio não é do erário. “Há grande chance de não existirem instrumentos para reaver o dinheiro desviado”, diz.

Ele também critica as decisões do STF que retiraram os casos da Justiça Federal e os transferiram para a Justiça Eleitoral, especialmente porque, em anos anteriores, foi o próprio STF que havia remetido esses processos para uma vara federal, quando políticos réus perderam o foro privilegiado, ao encerrarem mandatos.

“Não foi o Marcelo Bretas [da 7.ª Vara Federal do Rio], nem o Vallisney Oliveira [10.ª Vara Federal de Brasília] que decidiu isso. Minha surpresa é gente querer imputar isso ao juiz ou ao promotor que recebeu o caso do próprio STF”, afirma Calabrich.

E como fica a devolução de bens para quem assinou uma delação premiada

Já em relação a condenados que confessaram seus crimes em delações premiadas, a devolução de bens é considerada mais difícil. Isso porque os pagamentos que fizeram decorrem dos acordos de colaboração, que ficam intactos se uma condenação é anulada por motivos processuais, como é o caso da competência do juízo.

“O delator tem um contrato, um compromisso em colaborar com a acusação. Eventualmente, se uma sentença condenatória é anulada e alcança um delator, ok, anulou a sentença. Não está anulada a delação. Se eles pagaram algo, isso decorreu não da sentença, mas do acordo. Enquanto o acordo não for anulado, isso está valendo”, diz Aury Lopes Jr.


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