Stalin e Mao Tsé-tung eram ateus. Franco, Salazar e Pinochet eram católicos. Mas todos foram ditadores
Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo
Eu uso a palavra ateu com muita resistência. Por vezes, é por falta de termo melhor ou possível. Em outras, adoto por preguiça: complicado explicar muitas coisas.
É definitivo: não gosto do termo e ele nunca me descreveu. Como muitos sabem, a origem grega do termo indica uma ausência: “sem Deus”. Dizer que sou ateu (sem Deus) é tão esclarecedor quanto dizer que não sou chinês, não sou mulher, não sou cabeludo e não sou jovem. Existe um essencialismo que define a crença como a condição universal e absoluta e quem não a tem deve ser ateu. O problema é que a palavra ateu fala do crente, não seu oposto.
Séculos de teocracias estimulam o comportamento de buscar um vazio em quem não tem o preenchimento que desejamos ou escolhemos. Fui feliz e infeliz como católico devoto de terço diário e estudos bíblicos. Sou feliz e infeliz hoje, sem rosário (mas ainda estudando a Bíblia). Minhas angústias, compartilhadas com Deus ou com meu terapeuta e amigos, continuam quase sempre as mesmas. Melhorei em alguns aspectos, mas devo isso mais à idade do que à crença.
Conheci, pela vida, religiosos de vida exemplar e ateus sem caráter. Vivi com o inverso repetidas vezes. Não associo bom comportamento ao imaginário de cada um. Stalin era ateu. Franco e Salazar foram católicos. Pinochet adorava uma missa. Mao Tsé-tung abominava igrejas e templos. Todos eram ditadores e defenderam mortes e torturas. Pensar que a fé (ou a ausência dela) define caráter se choca com a experiência geral da história e o saber individual em cada biografia.
Reflita, se tiver apreço pela palavra de Jesus, na belíssima parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37). Não é a identidade religiosa que determina a caridade. Passaram pessoas de muita fé em Deus e ignoraram uma vítima de assalto. Passou um terceiro, alguém de que os judeus religiosos desconfiavam, um samaritano. Foi quem agiu. A caridade, condição para ser salvo no Juízo Final (cf Mateus 25), não pergunta sobre qual dízimo você pagou, ou qual tradução da Bíblia utilizou. A pergunta exclusiva do Mestre é sobre o que você fez para tornar o mundo melhor.
Quando alguém me diz que segue o candomblé, ou que é ateu ou católico, isso revela pouco ou nada sobre a ética. A carteirinha de filiação de cada um é um documento burocrático. Todos são humanos. A cor da camiseta do time é irrelevante. Basta saber se, de fato, se sente humano e tem compaixão por outras pessoas. Só isso. Tenho esperança nas mentes que se escondem sob hábitos. Gosto do caráter muito mais do que uma foto no documento.
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